quinta-feira, 19 de setembro de 2013

O que vocês não sabem e nem imaginam Eduardo White

Vocês não sabem
mas todas as manhãs me preparo
para ser, de novo, aquele homem.
Arrumo as aflições, as carências,
as poucas alegrias do que ainda sou capaz de rir,
o vinagre para as mágoas
e o cansaço que usarei
mais para o fim da tarde.

À hora do costume,
estou no meu respeitoso emprego:
o de Secretário de Informação e de Relações
[Públicas.
Aturo pacientemente os colegas,
felizes em seus ostentosos cargos,
em suas mesas repletas de ofícios,
os ares importantes dos chefes
meticulosamente empacotados em seus fatos,
a lenta e indiferente preguiça do tempo.

Todas as manhãs tudo se repete.
O poeta Eduardo White se despede de mim
à porta de casa,
agradece-me o esforço que é mantê-lo,
alimentado, vestido e bebido
(ele sem mover palha)
me lembra o pão que devo trazer,
os rebuçados para prendar o Sandro,
o sorriso luzidio e feliz para a Olga,
e alguma disposição da que me reste
para os amigos que, mais logo,
possam eventualmente aparecer.

Depois, ao fim da tarde,
já com as obrigações cumpridas,
rumo a casa.
À porta me esperam
a mulher, o filho e o poeta.
A todos cumprimento de igual modo.

Um largo sorriso no rosto,
um expresso cansaço nos olhos,
para que de mim se apiedem
e se esmerem no respeito,
e aquele costumeiro morro de fome.

Então à mesa, religiosamente comemos os quatro
o jantar de três
(que o poeta inconsta
na ficha do agregado).

Fingidamente satisfeito ensaio
um largo bocejo
e do homem me dispo.
Chamo pela Olga para que o pendure,
junto ao resto da roupa,
com aquele jeito que só ela tem
de o encabidar sem o amarrotar.

O poeta, visto depois
e é com ele que amo,
escrevo versos
e faço filhos.
[...]




Obras publicadas: Amar sobre o Índico (1984);Homoíne (1987); O país de mim (1989);Poemas da ciência de voar e da engenharia de ser ave (1992); Os materiais do amor; O desafio à tristeza (1996); Janela para oriente (1999). Eduardo White é possivelmente a maior expressão da poesia africana de Língua Portuguesa da atualidade. Moderníssimo, kafkiano, os seus textos apontam para uma leitura poética metalinguística, ou seja, em que os poemas, ao engendrarem a si mesmos, contam, paralelamente, a história de seu povo (amores, sofrimentos, opressões, miséria, estigmas das guerras, etc.) e a história da própria linguagem literária.

Fpnte: http://www.guesaerrante.com.br/2005/11/29/Pagina125.htm

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