quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Griots - uma breve história

"Numa cultura oral como a africana, o griot conserva a memória coletiva. Por isso, é costume dizer-se que «quando na África morre um ancião é uma biblioteca que desaparece». A figura do griot tem uma enorme importância na conservação da palavra, da narração, do mito. Na prática, eles funcionam como escritores sem papel nem pena. Ortografam na oralidade aquilo que deve permanecer embutido na memória e no coração dos seus familiares e conterrâneos, no sentido de manter incrustada a identidade do seu ser e das suas raízes, fundamentada, em grande parte, no seu passado e nos seus predecessores. 



Os griots são os guardiães, intérpretes e cantores da História oral de muitos povos africanos. Na língua mandinga são conhecidos como jali e na África Central como mbomvet. Todos eles possuem uma função social bastante semelhante e de grande relevância. 

Os griots cantam a história épica da África e os mitos dos diferentes povos, ou elogiam os méritos dos heróis e personagens do passado, geralmente acompanhados por instrumentos musicais, como a kora ou o xilofone. 

No passado, os griots eram contratados por reis e príncipes para enaltecerem as suas qualidades com cânticos durante as cerimônias sociais da corte (num evidentíssimo atentado à humildade…!). Todavia, por vezes, também sabiam criticar os seus mecenas com fina ironia (que nem todos, certamente, compreenderiam…). Pelo papel social que desempenhavam na corte, os griots gozavam de grande prestígio entre a sociedade tradicional africana. Eram imensamente estimados pelas suas capacidades musicais e poéticas, recebendo boa retribuição pelo seu trabalho. Mas também eram temidos, porque se pensava que dominavam certos poderes ocultos (para alguns, a inteligência e a mordacidade ainda hoje são “ciências” desconhecidas, não só na África como em todos os recantos do mundo!). Por esse motivo, quando morriam, não eram sepultados, sendo o seu cadáver colocado dentro do tronco oco de uma árvore e coberto com ramos, para que os seus restos não contaminassem a terra com os poderes mágicos. (Será que a árvore não poderia, então, começar a falar ou a ter qualquer outro comportamento estranho e inesperado?...). 

Massa Makan Diabaté, um dos griots mais importantes do nosso tempo, compara o griot à kora, instrumento de 21 cordas: as sete primeiras tocam o passado; outras sete o presente; e as últimas sete o futuro. Por isso, o griot é testemunha do passado, cantor do presente e mensageiro do futuro."


Os Griots

Depois de um bom jantar, com a lua brilhando, as pessoas de uma aldeia na África antiga podem ouvir o som de um tambor, chocalho, e uma voz que gritava: "Vamos ouvir, vamos ouvir!" Esses foram os sons do griot, o contador de histórias.

Quando eles ouviram o chamado, as crianças sabiam que estavam indo para ouvir uma história maravilhosa, com música e dança e música! Talvez hoje a história seria sobre Anansi, a aranha. Todo mundo adorava Anansi. Anansi podia tecer as teias mais bonitas. Ele foi quem ensinou o povo de Gana como tecer o pano de lama bonito. Anansi teve uma boa esposa, filhos fortes, e muitos amigos. Ele entrou em muita confusão, e usou sua inteligência e poder do humor de escapar.

Houve outras histórias que o povo gostava de ouvir mais e mais. Algumas histórias eram sobre a história da tribo. Alguns eram grandes guerras e batalhas. Algumas eram sobre a vida cotidiana. Não havia linguagem escrita na África antiga. Os narradores acompanhavam a história do povo.

Havia geralmente apenas um contador de histórias por aldeia. Se uma vila tentava roubar um contador de histórias de outra aldeia, era motivo de guerra! Os contadores de histórias foram importantes. Os griots não eram as únicas pessoas que podiam contar uma história. Qualquer um poderia gritar: "Vamos ouvir, vamos ouvir!" Mas os griots eram os "oficiais" contadores de histórias. O griot aldeia não tem que trabalhar nos campos. Sua tarefa era contar histórias.

Mil anos mais tarde, novas histórias sobre novos triunfos e novas aventuras ainda estão sendo informados pela aldeia pelos Griots.

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Lenda da Girafa


Há muito, muito tempo, a girafa era um animal igual aos outros, com um pescoço de tamanho normal.
Houve então uma terrível seca. Os animais comeram toda a erva que havia até mesmo as ervas secas e duras, e andavam quilômetros para ter água para beber.
Um dia, a Girafa encontrou o seu amigo Rinoceronte. Estava muito calor e ambos percorriam lentamente o caminho que levava ao bebedouro mais próximo e lamentavam-se.
– Ah, meu amigo – disse a Girafa, – vê só… Tantos animais a escavar o chão à procura de comida… Está tudo seco, mas as acácias mantêm-se verdes.
– Hum, hum – disse o Rinoceronte (que não era – e ainda não é – muito falador).
 – Seria tão bom – disse a Girafa – poder chegar aos ramos mais altos, às folhas tenras. Há muita comida, mas não conseguimos lá chegar porque não conseguimos subir às árvores.
O Rinoceronte olhou para cima e concordou, abanando a cabeça:
– Talvez devêssemos ir falar como o Feiticeiro. Ele é sábio e poderoso.
– Que bela ideia! – disse a Girafa. – Sabes onde fica a casa do Feiticeiro?
O Rinoceronte acenou afirmativamente e os dois amigos dirigiram-se para a casa do Feiticeiro após matarem a sede.
Depois de uma caminhada longa e cansativa, os dois chegaram à casa do Feiticeiro e explicaram-lhe ao que vinham.
Depois de ouvi-los, o Feiticeiro deu uma gargalhada e disse:
– Isso é muito fácil. Voltem amanhã ao meio-dia e eu dar-vos-ei uma erva mágica. Ela fará com que os vossos pescoços e as vossas pernas cresçam. Assim, poderão comer as folhas tenras das acácias.
No dia seguinte, só a Girafa chegou à cabana na hora marcada.
O Rinoceronte, que não era lá muito esperto, encontrou um tufo de erva ainda verde e ficou tão contente que se esqueceu do compromisso. Cansado de esperar pelo Rinoceronte, o Feiticeiro deu a erva mágica à Girafa e desapareceu.
A Girafa comeu sozinha uma dose preparada para dois. Sentiu imediatamente uma sensação estranha nas suas pernas e pescoço e viu que o chão estava a afastar-se rapidamente.
 “Que engraçado!” pensou a Girafa, fechando os olhos, pois começava a sentir-se tonta.
Passado algum tempo abriu lentamente os olhos. Como o mundo tinha mudado!
As nuvens estavam mais perto e ela conseguia ver longe, muito longe. A Girafa olhou para as suas longas pernas, moveu o seu pescoço longo e gracioso e sorriu. À sua frente estava uma acácia bem verdinha…
A Girafa deu dois passos e comeu as suas primeiras folhas.
Após terminar a sua refeição, o Rinoceronte lembrou-se do compromisso e correu o mais depressa que pôde para a casa do Feiticeiro.
Tarde demais! Quando lá chegou já a Girafa comia, regalada, as folhas da acácia.
Quando o feiticeiro lhe disse que já não havia mais ervas mágicas, o Rinoceronte ficou furioso, pois pensou que tinha sido enganado e não que fora o seu enorme atraso que o tinha prejudicado.
Tão furioso ficou que perseguiu o Feiticeiro pela savana fora.
Diz-se que foi a partir desse dia que o Rinoceronte, zangado com as pessoas, as persegue sempre que vê uma perto de si.
Fonte: Encantos da África – Lenda da Girafa

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Calendário Internacional da Cultura Negra



Dia 01
– Fundado o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAFRO). São Paulo/SP (1980).
Dia 07
– Dia de Nossa Senhora do Rosário, patrona dos negros.
Dia 10
– Morre Francisco Lucrécio, Secretário da Frente Negra Brasileira, em São Paulo (2001).
Dia 11
– Nasce Agenor de Oliveira, o Cartola. Cantor e compositor negro, figura entre os maiores representantes da Música Popular Brasileira. Rio de Janeiro/RJ (1908).
Dia 12
– Dia de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, considerada protetora dos negros. São Paulo/SP (1717).
Dia 13
-Criação do Teatro Experimental  do Negro (TEN). Rio de Janeiro /RJ (1944)
Dia 15
– Nasce Grande Otelo, ator de cinema e TV e um dos ícones da cultura negra. Rio de Janeiro/RJ (1915).
Dia 24
– Morre Rosa Parks, líder do Movimento dos Direitos Humanos. América do Norte/EUA (2005).

CONTO POPULAR DA GUINÉ-BISSAU –



Dizem na Guiné que a primeira viagem à Lua foi feita pelo Macaquinho de nariz branco.

 Segundo dizem, certo dia, os macaquinhos de nariz branco resolveram fazer uma viagem à Lua a fim de traze-la para a Terra. 


Após tanto tentar subir, sem nenhum sucesso, um deles, dizem que o menor, teve a ideia de subirem uns por cima dos outros, até que um deles conseguiu chegar à Lua.


 Porém, a pilha de macacos desmoronou e todos caíram, menos o menor, que ficou pendurado na Lua.


 Esta lhe deu a mão e o ajudou a subir. 


A Lua gostou tanto dele que lhe ofereceu, como regalo, um tamborinho. 


O macaquinho foi ficando por lá, até que começou a sentir saudades de casa e resolveu pedir à Lua que o deixasse voltar.


 A lua o amarrou ao tamborinho para descê-lo pela corda, pedindo a ele que não tocasse antes de chegar à Terra e, assim que chegasse, tocasse bem forte para que ela cortasse o fio. 


O Macaquinho foi descendo feliz da vida, mas na metade do caminho, não resistiu e tocou o tamborinho. 


Ao ouvir o som do tambor a Lua pensou que o Macaquinho houvesse chegado à Terra e cortou a corda. 


O Macaquinho caiu e, antes de morrer, ainda pode dizer a uma moça que o encontrou, que aquilo que ele tinha era um tamborinho, que deveria ser entregue aos homens do seu país. 


A moça foi logo contar a todos sobre o ocorrido. 


Vieram pessoas de todo o país e, naquela terra africana, ouviam-se os primeiros sons de tambor.


quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Na 2ª Guerra e no Haiti, soldado brasileiro usou música como 'arma'


Vinicius Mariano de Carvalho

Uma das imagens mais marcantes da participação brasileira na Segunda Guerra Mundial com a Força Expedicionária Brasileira, a FEB (1943-1945), não é de nenhum combate, mas de um "pracinha" desembarcando em Nápoles, na Itália, com seu saco na cabeça e empunhando, muito garboso, o estojo do seu violão.

Outras tantas fotografias daquela que foi a primeira campanha brasileira fora de seu território desde a Guerra do Paraguai (1864-1870) retratam soldados com violões, cavaquinhos, pandeiros, agogôs, trompetes e outros instrumentos.

Encontrei recentemente, em arquivos da BBC, gravações das músicas cantadas pelos pracinhas brasileiros na Itália1. As gravações foram trabalho do correspondente de guerra da emissora para o Brasil, Francis Hallawell, também conhecido como "Chico da BBC".

Equipado com um gravador de discos, ele acompanhou a campanha durante a Segunda Guerra e legou documentação radiofônica extremamente rica. Algumas dessas músicas já circulavam por sites sem tanta visibilidade, enquanto outras se mantinham completamente desconhecidas, sem estudos sobre tais produções.

São sambas, marchas, emboladas, baladas: registros da diversidade e da riqueza musical brasileira, reflexo da diversidade da FEB —com pracinhas de todo o Brasil. Essas canções são marcas da maneira como os soldados viveram e expressaram suas experiências na guerra.

Situação semelhante ocorreu com a música brasileira na Guerra do Paraguai. Pouco se conhece sobre o que tocavam e cantavam os soldados em campanha.

Em outra pesquisa, descobri manuscritos de obras compostas pelo mestre de banda do Corpo de Voluntários da Pátria do Pernambuco, Fillipe Neri de Barcelos.

Eram músicas populares de então: um galope, uma marcha e até mesmo uma polca; mais sobre esse material estará no livro "A Música Militar na Guerra da Tríplice Aliança - Notas Documentais e Manuscritos Revelados", com um texto sobre a música militar na Guerra do Paraguai e a edição contemporânea dos manuscritos, bem como com acesso à gravação contemporânea das obras restauradas.

Já no século 21, um novo contingente brasileiro seria acionado novamente, mas por outro motivo: uma missão de paz em solo haitiano. O ano era 2004, e o Brasil aportaria na Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah) para ficar por 13 anos.
om mais de 37 mil militares brasileiros durante toda a missão, foi a operação internacional mais longa de nossas Forças Armadas, findada no último dia 15, com a saída do contingente final de tropas.

Apesar de tantas diferenças entre a Minustah, a Guerra do Paraguai e a Segunda Guerra Mundial, há um ponto em comum para as forças brasileiras: a presença da música popular e viva executada pelos soldados, transportada e apresentada como um patrimônio nacional valioso —e que deve ser cultivado e praticado pelos militares.

LÁ NO HAITI

Essas observações são fruto de minha experiência como pesquisador de música militar e também como pesquisador do Brasil em Operações de Paz. Não pretendo aqui ter a palavra final sobre a música entre as tropas da Minustah. Apenas chamo a atenção para este recurso peculiar do soldado brasileiro empregado com eficácia e eficiência, seja em combate, seja na caserna.

Estive pela primeira vez no Haiti em 2013. A pesquisa em si não era necessariamente relacionada à música, porém esta não me passou despercebida.

Em uma das atividades, num sábado, acompanhei um grupo de militares da companhia de engenharia brasileira em uma visita a um orfanato de Porto Príncipe. O objetivo era levar sopa bem nutrida para as crianças lá residentes.

Poderia ser apenas um ato simples de solidariedade: chegar, deixar a sopa, retornar à base. Afinal, era um dia livre para aqueles militares que, voluntariamente, se propuseram a participar da atividade.

Chamou-me a atenção um cabo, de violão em punho, que embarcou na viatura. A imagem remeteu-me imediatamente àquela do pracinha desembarcando em Nápoles.

Vinicius Mariano de Carvalho

Cabo da Minustah empunha violão ao desembarcar no Haiti

Enquanto parte dos militares preparava a distribuição da sopa no orfanato, o cabo reunia-se com as crianças em uma sala e, com seu violão, cantava e brincava com os pequenos. Cantava em português, incluía algumas palavras em "créole" haitiano, tocava algumas canções completas na língua que, desconfio, não era de seu domínio e fluência.

A cena foi inesquecível. Em poucos minutos, estávamos também eu e meus outros colegas pesquisadores cantando e brincando com as crianças, que já arriscavam algumas palavras em português —tanto como nós algumas em "créole".

Nesta mesma viagem, acompanhei uma ação cívico-social em Cité Soleil; lá, a música esteve outra vez presente. De um lado, alguns soldados já formavam um grupo de pagode. Com cavaquinho, violão, atabaque, pandeiro e tamborim, cantavam com crianças e adultos os mais recentes sucessos de grupos de pagode populares no Brasil.

Ao cair da tarde, uma grande roda de capoeira se formou no centro da praça em frente à base brasileira da Minustah naquele bairro e, por horas, as ladainhas e refrães da capoeira ecoaram com os berimbaus e atabaques, envolvendo haitianos e brasileiros.

Finalmente, ecoou no sistema de som montado para a ocasião o "Ohrwurm" —aquela melodia que não sai da nossa cabeça— de Michel Teló, "Ai, se eu te pego", e o coro era uníssono entre haitianos e soldados brasileiros, um verdadeiro vínculo harmônico provocado pela canção de sucesso.

Nestes 13 anos de missão, com 26 contingentes, militares de todo o Brasil tiveram a oportunidade de passar seis meses no Haiti. Nesta transposição (também cultural), levaram consigo suas práticas musicais locais e, principalmente, as canções mais populares no Brasil à época. Os soldados atuaram, então, como genuínos embaixadores culturais do país.

Ainda é cedo para notar o reflexo que isso teve (e terá) para a música haitiana. A presença desses contingentes, porém, de forma tão ativa no território, criou uma possibilidade de que influências brasileiras tenham ido muito além do contato superficial.

Estou certo de que muitos outros visitantes e, principalmente, militares brasileiros que atuaram nestes 26 contingentes têm dezenas de experiências semelhantes para relatar, seja como espectadores, seja como participantes dessas partilhas musicais.

TRADIÇÃO

O soldado é criativo e bem-humorado. Quando se trata de fazer música, essas características são ainda mais marcantes. Nos sambas e marchas dos pracinhas da FEB, o que se nota é sempre uma descrição irônica das agruras da vida em campanha: uma leitura cômica de fatos trágicos que deixaram marcas profundas.

Um exemplo desse despojamento vem da Segunda Guerra: a metralhadora alemã MG-42, terror das tropas brasileiras, ganhou o apelido de "Lourdinha" nas canções dos soldados brasileiros à época.

Isso porque o som da cadência de fogo da arma remetia à maneira de falar de Lourdinha, a namorada de um pracinha. E ela ganhou mais que um samba em sua homenagem.

Mesmo se refletirmos sobre a insígnia e o lema da FEB —a cobra fumando—, enxergamos um marco da maneira divertida e bem-humorada do soldado brasileiro ao refletir a experiência da guerra.

Na FEB, muitas dessas gravações sobreviveram graças às transmissões da BBC, em que os soldados imitam instrumentos musicais como trompetes e trombones, usando a própria voz, já que nem sempre dispunham de instrumentos.

Dito isso, posso especular que pagodes, forrós, sertanejos e funks entoados pelos soldados da paz no Haiti surgiram ironizando, interpretando humoristicamente, a experiência na missão. Afinal, mesmo no Brasil, durante seu serviço militar obrigatório, o militar assim se expressa.

Por meio das mídias sociais, especialmente o YouTube, encontra-se parte da produção musical dos soldados, filmadas com celulares e postadas na internet. São funks e pagodes nos quais se interpreta de forma irônica a escala de serviço, a hora como sentinela, a faxina etc.

Outro aspecto muito interessante do intercâmbio cultural do soldado brasileiro em campanha é a incorporação de elementos linguísticos.

Assim como nos sambas e marchas dos pracinhas na Itália o medo virou "paura", o alemão virou "tedesco" e a loira virou "bionda", o veterano brasileiro da Minustah incorporou o "créole" haitiano —e não há quem não se refira a um "bom bagai", que poderia ser traduzido em português como o "gente boa".

Não será surpresa se outros tantos termos da língua venham a se incorporar no linguajar da caserna e, consequentemente, nas músicas daí nascidas.

IMPROVISO

Em uma última visita de pesquisa à Minustah, em agosto, pude perceber outro aspecto peculiar da música entre os soldados do 26º Contingente do Batalhão Brasileiro de Força de Paz (Brabat). Observei que a experiência de agente de pacificação era motivo de inspiração para o graduado que puxava as canções na corrida do treinamento físico.

Muitas destas canções denotavam que a inspiração já vinha desde o período de preparação da tropa ainda no Brasil —pois remetiam a eventos anteriores à chegada ao Haiti. De todo modo, as canções "improvisadas" pelo sargento Malheiros confirmavam muitas das hipóteses que levanto neste texto. Cantava ele com a tropa:

"Aqui em Caçapava
Eu mal falava português
Mas lá em Porto Príncipe
Eu vou gastar o meu inglês

Hello, good morning
How are you
I'm fine, thank you

Aqui no Brabat
Eu já falo até inglês
Mas lá no Haiti
Eu vou testar o meu francês

Bonjour,
Comment allez-vous
Ça va bien
Merci beaucoup"

Nota-se a ironia, o bom humor e o jogo com as línguas, resultado do convívio com outros idiomas na missão.

A realidade operacional da tropa também encontrou versos nas canções do sargento Malheiros. Na monotonia melódica típica das canções de corrida —nas quais o ritmo do verso é o fator relevante, combinado com seu conteúdo, que deve necessariamente ser de motivação moral—, encontrar a palavra certa e a familiaridade do conteúdo para o soldado é o cerne da arte poética.

Isso se vê com maestria nesta canção de corrida:

"Patrulha a pé, motorizada
Check-point, escolta armada
Ações cíveis, humanitárias
A tropa está bem preparada
Manter estável o ambiente
A segurança, conte com a gente"

Além da finalidade motivacional e irônica, essas canções também têm um caráter formativo interessante, já que, na repetição dos versos em coro, os procedimentos, os valores, os objetivos e as táticas são repassados e reforçados, como podemos ver abaixo:

"Peacekeeper foi chamado
Para mais uma missão
Check aos pares, cobertura
Double Tap, tá na veia
Peacekeeper tá na área
Acabou a brincadeira
Capacete azul, colete
E com meu fuzil na mão
Armamento de backup
Estou pronto para ação
Inimigo à direita, à esquerda
E retaguarda
Saio da visão de túnel
Estou sempre na vanguarda
Mão forte ou mão fraca
Já domino a posição
Um, dois, três e sul
e até retenção
Peacekeeper é um soldado
Ele luta pela paz
Agora eu vou contar
Pra você o que ele faz"

Em um texto especulativo como este, cheio de conjecturas sobre a possível música que surgiu dessa convivência de 13 anos, o que se tem mais ao certo é que a música brasileira esteve presente de forma intensa e viva no Haiti: não apenas através de gravações e discos, mas praticada e estimulada pelo soldado brasileiro.

O peso diplomático desempenhado por essa prática é muito relevante. Além do engajamento militar em seu aparato de força, da presença marcante de agentes vários nos momentos de maior trauma humanitário (como no terremoto de 2010) e dos grandes esforços diplomáticos formais, o Brasil também teve uma atuação diplomática de outra ordem.

Ela foi executada com sensibilidade pelo soldado por meio de um típico exercício de diplomacia cultural: simplesmente cantando, tocando seus instrumentos, praticando capoeira com a população local.

Esse exercício de diplomacia cultural tem fortes impactos: reforça laços de camaradagem, reafirma um soft power sem pretensões impositivas, facilita o diálogo e a compreensão e demonstra que, espontaneamente, estruturas pacificadoras podem ser estabelecidas e implementadas.

Alguns estudos acadêmicos acerca da participação brasileira em operações de paz —e no caso do Haiti em particular— tratavam de um diferencial cultural comum entre os soldados brasileiros que os colocava em situação privilegiada quando na necessidade de resolver situações de conflito ou de evitar essas mesmas situações.

Um suposto "jeito brasileiro de fazer operações de paz" foi sempre muito relacionado ao aspecto cultural. Sem dúvida, a música é uma das ferramentas para esse diferencial cultural.

Aqui, talvez a "arma secreta" brasileira nas operações de paz seja levada pelo soldado dentro do estojo de um violão. "Arma" que, quando acionada, ajuda-o a evitar conflitos, pacificar situações, filtrar suas experiências mais duras de combate e traduzir o que ele vivenciou para aqueles que não compartilharam de sua vivência.

*

VINICIUS MARIANO DE CARVALHO, 43, doutor em literaturas românicas pela Universidade de Passau, na Alemanha, é professor de estudos brasileiros no King's Brazil Institute e no Departamento de Estudos de Guerra, no King's College London. Sua mais recente obra é "A Música Militar na Guerra da Tríplice Aliança - Notas Documentais e Manuscritos Revelados" (no prelo 2017).


Este texto é uma adaptação de artigo que integra o livro "A Participação do Brasil na Minustah (2004-2017): Percepções, Lições e Práticas Relevantes para Futuras Missões", uma parceria entre o Instituto Igarapé e o Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil (CCOPAB). O lançamento será nesta quarta (18), em Brasília, em evento organizado pelo Exército para celebrar o término da missão no Haiti. A íntegra pode ser lida aqui.

Fonte:Ilustríssima - Folhauol

terça-feira, 17 de outubro de 2017

Lendas Africanas: Jabulani e o Leão



Há muitas e muitas luas, no tempo em que as pessoas conversavam com os animais, vivia um menino chamado Jabulani. Ele fazia parte dos suázipovo muito corajoso que mora em uma região da África cheia de altas montanhas e florestas.

Na língua do seu povo, Jabulani significa “aquele que traz felicidade”. E foi exatamente isso que sua mãe e seu pai sentiram quando ele chegou ao mundo, em uma manhã quente de janeiro: Jabulani seria alguém especial que traria muito amor a todos.

Desde pequeno, Jabulani gostava de ajudar todo mundo. Sentia uma felicidade imensa no coração quando isso acontecia. Para ele, era como se uma pequena mágica ocorresse: ajudar fazia a outra pessoa se sentir melhor, possibilitava que algo bom acontecesse, tornava Jabulani e o mundo mais felizes. Seu avô dizia que esta era uma das mágicas mais poderosas que o ser humano sabia e podia fazer.

Um belo dia, Jabulani andava contente da vida pela floresta, depois de brincar com seus amigos. Quando atravessava uma pequena clareira, ouviu uma voz muito triste, pedindo:

- Socorro, alguém me ajude, por favor... Preciso sair daqui!
Depois de muito procurar de onde vinha aquela voz tão chorosa, Jabulani descobriu. Ali, no meio do mato, havia uma velha armadilha escondida por um caçador. Dentro, quem estava? Um leão enorme, muito chateado.

- Senhor leão, eu sou Jabulani – apresentou-se com prontidão o menino.

- O que aconteceu com o senhor?

- Oh, até que enfim alguém apareceu neste triste lugar – o leão suspirou aliviado. – Menino, estou preso aqui quase um dia inteiro. Tenho muita sede e fome. Por favor, me ajude a sair – e fez uma cara de dar dó.

Jabulani gostava muito de ajudar, mas não era bobo não. Sabia que tinha de tomar cuidado e, se soltasse o leão, ele poderia atacá-lo e comê-lo com uma dentada só.

- Senhor leão, entendo sua situação, mas tenho medo. Como me disse que está com muita fome, quem me garante que o senhor não vai sair da armadilha e me comer?

- Eu não faria uma coisa dessas com você, meu rapaz! Como eu poderia atacar o meu salvador? Isso não seria certo. Eu prometo que não farei mal a você.

Jabulani pensou, pensou e pensou, e decidiu confiar no leão.

Afinal, ele havia prometido. E promessa é promessa!

- Ta bom, ta bom! Eu vou confiar na promessa do senhor – Jabulani chegou perto da armadilha e puxou a corda que mantinha a porta fechada.

O leão saiu da armadilha, suspirou, espreguiçou-se e esticou as patas, afinal, ele havia ficado muito tempo preso em um lugar pequeno e as pernas estavam dormentes.

Depois disso, virou-se lentamente e olhou bem fundo nos olhos do menino.

- Jabulani, preciso beber um bom gole de água no rio antes de comer você!

Jabulani não acreditou no que o leão falava, achou que ele estava mangando.

Não podia ser verdade.

- O senhor está brincando? Só pode ser isso, não é? – perguntou o menino com um sorriso de medo no cantinho da boca.

O leão olhou bem sério:

- Não, não estou não. Você vai beber água comigo e depois vou te comer.

Estou com muita fome.

- Mas o senhor prometeu que não faria isso comigo! O senhor prometeu – gritou Jabulani.

O leão coçou a cabeça e respondeu:

- Prometi, sim, você tem razão. Mas promessa feita por alguém que está com muita fome, na hora do desespero, não conta. Por isso, acho que é justo comer você!

Assustado, Jabulani tomou coragem e falou bem alto, com toda a força dos seus pequenos pulmões:

- Não é justo, não! Eu ajudei o senhor! Não se pode fazer isso com alguém que nos ajuda. Vamos perguntar a opinião dos outros animais da floresta e saber quem tem razão.

O leão estava com fome, mais não queria ser injusto. Não queria ficar com dor na consciência. Por isso, era melhor ouvir a opinião dos outros.

- Tudo bem, tudo bem. Se algum deles achar que minha decisão não é correta, eu o deixarei partir. Mas façamos a coisa rapidamente, porque minha barriga está roncando demais.

Quando estavam subindo a ladeira, depois de beber água no rio, Jabulani e o leão encontraram um velho burrinho magro e sem dente, tentando arrancar um capim seco.

- Senhor burro, boa tarde! Precisamos ouvir sua opinião sobre um caso de vida ou morte.

- Pois não. Diga menino!

Então Jabulani contou toda a história para o burro: como havia encontrado e salvado o leão e como agora ele, muito ingrato, queria comê-lo.

- O senhor acha justo?

O burrinho ficou em silêncio, pensando no que iria responder. 

Depois de um tempo que pareceu grande, mas tão grande para Jabulani, o burrinho tossiu, limpou a garganta e respondeu:

- Acho justo sim, muito justo que o leão coma você. Afinal, ele está com fome e vocês, seres humanos, não pensam duas vezes antes de sacrificar um animal quando assim o desejam – e olhou para Jabulani com uma mistura de raiva e tristeza. – Vejam a minha situação. Trabalhei a vida toda para um homem que cuidou de mim enquanto fui útil para ele. Eu carregava dia e noite nas minhas costas tudo o que ele precisava. Mas depois que fiquei velho e mal consigo me alimentar sozinho ele me abandonou aqui na floresta para que eu morra de fome. Você acha isso justo?

Jabulani abaixou a cabeça e disse um “não” bem baixinho. Ele não achava justo o que tinham feito contra o burrinho, mas por que ele tinha de morrer por causa dos erros de outros homens? Então o leão se virou para Jabulani e falou:

- Veja, ele me deu razão. Vamos acabar logo com isso – e levantou as garras para atacar o menino.

- De jeito algum, o burro é somente “um” animal. Vamos perguntar para outros.

Contrariado, o leão concordou resmungando e Jabulani suspirou de alívio.

Depois eles encontraram uma vaca pastando. Jabulani e o leão a cumprimentaram e o menino logo contou a ela o caso todo da armadilha. A vaca fez um “Mmuu” bem bravo e falou:

- Os seres humanos são muito egoístas, só pensam neles. Para mim, são todos iguais! Nós, vacas, damos o nosso melhor leite para vocês. Puxamos o arado para que vocês possam plantar as sementes. E o que vocês fazem quando chegamos á velhice? Nos matam, nos comem e usam o nosso couro para a roupa. Por isso, acho que o leão está correto em te comer. Nada mais justo do que um animal com fome comer sua presa. Vocês, seres humanos, agem da mesma forma ou até muito pior conosco, animais.

Jabulani pensou: “Acho que estou perdido e nunca mais vou voltar para minha casa, nunca mais vou ver meu pai, minha mãe, meus irmãos, meus amigos...

Nunca mais!”

Sem esperanças, Jabulani ainda contou a história da armadilha para um grupo de veados, depois para dois pássaros, uma hiena e três coelhos. E todos concordaram que o leão devia comê-lo!

Quando o leão já estava se preparando para saborear o garoto, eis que aparece, como quem não quer nada, um pequeno chacal.

- Deixe-me perguntar para ele, senhor leão. Só para ele.

- Pois será o último e não insista mais – decretou o leão.

Então, Jabulani chegou perto do chacal e contou toda a história. O chacal fez várias perguntas e, com cara de bobo, disse para os dois:

- Não sei se entendi direito. Para dar minha opinião, precisaria ver melhor como as coisas aconteceram. Levem-me até a armadilha!
E foi assim que Jabulani e o leão fizeram. Quando chegaram ao lugar o chacal perguntou:

- Sei não – coçou a cabeça. – Não consigo entender com o leão entrou nesta armadilha. Ela parece tão pequena para um leão tão grande e forte.

Cansado e com muita fome, o leão nem pensou:

- Ta bom, ta bom... Vamos logo com isso. Eu vou entrar lá para você ver – e de um pulo entrou na armadilha.

Então, Jabulani correu e com um único movimento soltou a corda. A grade da armadilha se fechou rapidamente. Confuso, o leão não entendeu o que havia ocorrido.

Com o coração apertado, Jabulani deu uma última olhada para o leão presto e foi embora para cara. E o chacal desapareceu como um fantasma na mata.
Fonte: lendasafricanas33c.blogspot.com.br

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

'Capoeira gospel' cresce e gera tensão entre evangélicos e movimento negro Associando a arte afrobrasileira a músicas de louvor cristão, religiosos sofrem resistência dentro e fora das igrejas.

Associando a arte afrobrasileira a músicas de louvor cristão, religiosos sofrem resistência dentro e fora das igrejas.

'O berimbau vai aonde o terno não chega': a capoeira gospel une a arte brasileira à religião evangélica (Foto: BBC Brasil/Reprodução)
O berimbau vai aonde o terno não chega': a capoeira gospel une a arte brasileira à religião evangélica (Foto: BBC Brasil/Reprodução)

Estavam presentes o berimbau, o atabaque, a ginga e os saltos mortais.
Quase tudo fazia lembrar um jogo de capoeira típico, mas, em vez dos
cânticos que enaltecem os orixás ou trazem referências à cultura negra, os versos faziam louvor a Jesus Cristo e a roda era alternada com momentos
de pregação e oração.

"Não deixa seu barco virar, não deixa a maré te levar, acredite no Senhor,
só ele é quem pode salvar", cantavam as cerca de 200 pessoas, reunidas
na quadra de uma escola para o "1º Encontro Cristão de Capoeira do Gama" (região administrativa do Distrito Federal), numa tarde de sábado.

Era mais um evento de capoeira evangélica, também chamada de capoeira gospel, vertente que ganha cada vez mais adeptos no Brasil, principalmente
por meio da palavra e do gingado de antigos mestres que se converteram à religião. Se antes a prática enfrentava resistência dentro de igrejas, agora,
nessa nova roupagem, é cada vez mais considerada uma eficiente
ferramenta de evangelização.

"Hoje é difícil você ir numa roda que não tenha um (capoeirista evangélico), e vários capoeiristas viraram pastores. É um instrumento lindo de evangelização porque é alegre, descontraído, traz saúde, benefícios sociais", afirma Elto de Brito, seguidor da Igreja Cristã Evangélica do Brasil e um dos palestrantes do evento.

Praticante de capoeira há 40 anos e convertido há 25, Suíno é líder do movimento "Capoeiristas de Cristo", que estima reunir cerca de 5 mil pessoas
no país. Ele realiza encontros nacionais em Goiânia há 13 anos - a edição
de 2018 será pela primeira vez em Brasília.

O mestre calcula ainda que já existem cerca de 30 "ministérios" de
capoeira, ou seja, grupos diretamente ligados a igrejas. "Há um cuidado
para não chocar com as visões da igreja. Cuidado com a roupa, com
o linguajar, com as músicas, mas que "não necessariamente tem que
ser só música que fala de evangelho, de Deus", explica.
Crescimento da capoeira 'gospel' tem gerado incômodo entre capoeiristas tradicionalistas e o movimento negro (Foto: BBC Brasil/Reprodução)
Crescimento da capoeira 'gospel' tem gerado incômodo entre capoeiristas tradicionalistas e o
movimento negro (Foto: BBC Brasil/Reprodução)
Críticas
O crescimento da prática, porém, tem gerado incômodo entre capoeiristas tradicionalistas e o movimento negro, que veem na novidade uma forma de apropriação cultural e apagamento da raiz afrobrasiliera da capoeira, prática que surgiu como forma de resistência entre escravos, a partir do século 18.
Eles também reclamam que em algumas dessas rodas haveria discursos
de "demonização" contra a capoeira tradicional e as religiões do candomblé
e da umbanda.
O Colegiado Setorial de Cultura Afrobrasileira, que faz parte do Conselho Nacional de Políticas Culturais do Ministério da Cultura, chegou a divulgar
em maio a "Carta de repúdio à 'capoeira gospel' e à expropriação das expressões culturais afrobrasileiras".

'O pastor com berimbau chega aonde o pastor de terno não chega', diz a professora de capoeira Laís Dutra (Foto: BBC Brasil/Reprodução)
O pastor com berimbau chega aonde o pastor de terno não chega', diz a professora de capoeira Laís Dutra (Foto: BBC Brasil/Reprodução)
O documento, uma reação ao 3º Encontro Nacional de Capoeira Gospel
convocado para junho deste ano, em João Pessoa (PB), reconhece que seguidores de qualquer credo podem praticar capoeira, mas cobra
"respeito" a sua tradição.
"Temos lutado contra o racismo em suas diversas e perversas
manifestações. A demonização perpetrada por pastores, mestres ou
professores de 'capoeira gospel', ensinando o ódio e a intolerância
contra as raízes da capoeira e contra seus praticantes não evangélicos,
é um crime de ódio que fere a liberdade e a dignidade humana",
diz a carta.
Patrimônio
A capoeira, que no passado chegou a ser proibida, recebeu em 2014
o título de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade da Unesco,
órgão da ONU para educação. O Iphan, órgão responsável por sua "salvaguarda" no Brasil, reconhece em documento sua "ligação com
práticas ancestrais africanas".
A antropóloga Maria Paula Adinolfi, técnica do Iphan, diz que
"não é possível impedir a capoeira gospel", mas explica que o órgão
está focado em "fortalecer ações que vinculam a capoeira à
matriz africana" como "uma política de reparação do processo
de apagamento da memória afrobrasileira e de genocídio do povo negro".

Capoeira chegou a ser proibida no passado e, em 2014, recebeu o título de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade da Unesco (Foto: BBC Brasil/Reprodução)
Capoeira chegou a ser proibida no passado e, em 2014, recebeu o título de Patrimônio Cultural
Imaterial da Humanidade da Unesco (Foto: BBC Brasil/Reprodução)
Organizador do evento na Paraíba, Ricardo Cerqueira, o contramestre
Baiano, recebeu, além da carta de repúdio, algumas ligações com
críticas e até mesmo ameaças de processo. Seguidor da Igreja
Batista, ele diz reverenciar os grandes mestres da capoeira, como
os baianos Bimba, Pastinha e Waldemar, já falecidos, mas argumenta
que a "capoeira não pertence à cultura africana".
"O país é laico. Acho que cada um tem liberdade para fazer a sua
capoeira da forma que quiser", defendeu.
"Colocamos o nome gospel sem intenção de descaracterizar a
capoeira, até porque nós usamos todos os instrumentos e cantamos
também música secular", disse ainda.
Diferenças
Além das músicas e orações, mais alguns detalhes diferenciam
a capoeira evangélica da "capoeira do mundo", explicou à
reportagem Gilson Araújo de Souza, pastor evangélico e
mestre capoeirista em Manaus.

Mestre Suíno calcula ainda que já existem cerca de 30 'ministérios' de capoeira, ou seja, grupos diretamente ligados a igrejas (Foto: BBC Brasil/Reprodução)
Mestre Suíno calcula ainda que já existem cerca de 30 'ministérios' de capoeira, ou seja,
grupos diretamente ligados a igrejas (Foto: BBC Brasil/Reprodução)
Em geral, rodas evangélicas não chamam a troca de corda de
"batismo" porque o termo deve ser usado apenas no seu sentido
religioso, de se converter e receber o Espírito Santo. Além disso,
alguns capoeiristas também evitam o uso de apelidos, que, segundo
Souza, tem origem na época que a capoeira era perseguida.
"No mundo cristão, Deus nos chama pelo nome. Antes, eu era
conhecido como mestre Gil Malhado, hoje sou chamado de mestre
pastor Gilson. Não preciso me camuflar", explica ele, que faz
parte da Igreja de Cristo Ministério Apostólico.

Adoção do termo
Adoção do termo "gospel" serve para quebrar resistências, diz mestre de
capoeira (Foto: BBC Brasil/Reprodução)
"Anos atrás, eu enfrentei muita dificuldade para levar a capoeira
para a igreja. O pastor batia a porta na minha cara, dizia que
era coisa da macumba, que não podia. Hoje eu sou pastor e
as portas se abriram", conta também.
Segundo o mestre Suíno, a adoção do termo "gospel" fez parte
desse processo de quebrar resistências. Era uma forma, observa,
de convencer os pastores que a capoeira podia ser praticada
dentro dos valores cristãos.
Hoje ele próprio repudia esse "rótulo" por causa da polêmica
que tem gerado. Suíno afirma que, apesar de haver algumas
práticas próprias da capoeira cristã, sua "essência" de
capoeira é a mesma.
"Não existe capoeira gospel! Não queremos bagunçar a capoeira.
Nós respeitamos os mestres, respeitamos os fundamentos da
capoeira, respeitamos as tradições, e vamos defender porque
quem não defende a capoeira não tem direito de ser capoeirista",
discursou, empolgado, durante o evento no Gama, cujo lema
era "minha cultura não atrapalha a minha fé".
Constante mutação

Alguns mestres de capoeira acusam capoeiristas evangélicos de apagar a raiz africana dessa arte brasileira (Foto: BBC Brasil/Reprodução)
Alguns mestres de capoeira acusam capoeiristas evangélicos de apagar a raiz
africana dessa arte brasileira (Foto: BBC Brasil/Reprodução)
Diante da polêmica, o historiador da capoeira Matthias Röhrig
Assunção ressalta que a prática já passou por muitas
transformações desde seu surgimento.
Hoje, há três vertentes principais: a angola (mais lenta e gingada,
tida como a mais próxima da "original"), a regional
(mais acelerada, que incorpora movimentos de lutas marciais)
e a contemporânea - uma mistura das duas primeiras que
surgiu no Sudeste a partir dos anos 70 e foi o estilo
que conquistou o mundo.
"Acho que capoeira tradicional não existe mais, todos
(os estilos) são modernizados", resume Assunção,
que é professor do departamento de história da
Universidade de Essex, na Inglaterra.
Capoeira enfrentava resistência dentro de igrejas, agora, com nova roupagem, é cada vez mais considerada ferramenta de evangelização (Foto: BBC Brasil/Reprodução)
Capoeira enfrentava resistência dentro de igrejas, agora, com nova roupagem,
é cada vez mais considerada ferramenta de evangelização (Foto: BBC Brasil/Reprodução)
Embora não simpatize com a ideia de uma capoeira
evangélica, o professor afirma que não se trata do
primeiro processo de "apropriação" da prática.
"A capoeira gospel me parece ser mais uma estratégia
desses grupos religiosos de ocuparem espaços e de ganhar
adeptos, mas não vejo como parar isso, não tem como
proibir", observou.
"Historicamente, houve muitas apropriações da capoeira.
Há uma apropriação nacionalista forte, rodas no exterior
com as bandeiras do Brasil, o verde e o amarelo, por exemplo,
m que a origem da capoeira, a história de resistência e a
ligação com os africanos escravizados muitas vezes não
têm destaque algum", pondera.

Fonte: G1 DF/BBC/Brasil

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Narrativa e Cidadania - África Brasil 2017 - Universidade Estadual do Piauí





Escravidão, e não corrupção, define sociedade brasileira, diz Jessé Souza

RESUMO Autor argumenta que a visão do brasileiro como vira-lata, pré-moderno, emotivo e corrupto decorre de uma leitura liberal, conservadora e equivocada de nosso passado. Para ele, é preciso reinterpretar a história do Brasil tomando a escravidão como o elemento definitivo que nos marca como sociedade até hoje.



Quem sintetizou a interpretação dominante do Brasil, que todos aprendemos nas escolas e nas universidades, foi Gilberto Freyre (1900-87). É a ideia de que viemos de Portugal e que de lá herdamos um jeito específico de ser. Para o autor de "Casa-Grande e Senzala" e para seguidores como Darcy Ribeiro(1922-97), essa herança era positiva ou, pelo menos, ambígua.

Sérgio Buarque de Holanda (1902-82), outro filho de Freyre, reinterpreta a ideia como pura negatividade em registro liberal. Cria, assim, o brasileiro como vira-lata, pré-moderno, emotivo e corrupto. Tal visão prevaleceu, e quase todos a seguem, de Raymundo Faoro (1925-2003), Fernando Henrique Cardoso e Roberto DaMatta  a Deltan Dallagnol e Sergio Moro.

Essa é a única interpretação totalizante da sociedade brasileira que existe até hoje.
Reprodução



Reprodução - Obra de Johann Moritz Rugendas (1802-1858)

A "esquerda", entendida como a perspectiva que contempla os interesses da maioria da sociedade, jamais construiu alternativa a essa leitura liberal e conservadora. Existem contribuições tópicas geniais, mas elas esclarecem fragmentos da realidade social, não a sua totalidade, permitindo que, por seus poros e lacunas, penetre a explicação dominante.

A ausência de interpretação própria fez com que a esquerda sempre fosse dominada pelo discurso do adversário. Reescrever essa história é a ambição de meu novo livro, "A Elite do Atraso - Da Escravidão à Lava Jato" [Leya, 240 págs., R$ 44,90]. O fio condutor é a ideia de que a escravidão nos marca como sociedade até hoje —e não a suposta herança de corrupção, como se convencionou sustentar.

Para Faoro, por exemplo, a história do Brasil é a história da corrupção transplantada de Portugal e aqui exercida pela elite do Estado. Nessa narrativa, senhores e escravos raramente aparecem e nunca têm o papel principal.

Essa abordagem seria apenas ridícula se não fosse trágica. Faoro imagina a semente da corrupção já no século 14, em Portugal, quando não havia nem sequer a concepção de soberania popular, que é parteira da noção moderna de bem público. É como ver um filme sobre a Roma antiga cheio de cenas românticas que foram inventadas no século 18. Não obstante, o país inteiro acredita nessa bobagem.

ESCRAVIDÃO

Os adeptos dessa interpretação dominante parecem não se dar conta de que, em uma sociedade, cada indivíduo é criado pela ação diária de instituições concretas, como a família, a escola, o mundo do trabalho.

No Brasil Colônia, a instituição que influenciava todas as outras era a escravidão (que não existia em Portugal, a não ser de modo tópico). Tanto que a (não) família do escravo daquele período sobrevive até hoje, com poucas mudanças, na (não) família das classes excluídas: monoparental, sem construir os papéis familiares mais básicos, refletindo o desprezo e o abandono que existiam em relação ao escravo.

Também no mundo do trabalho a continuidade impressiona. A "ralé de novos escravos", mais de um terço da população, é explorada pela classe média e pela elite do mesmo modo que o escravo doméstico: pelo uso de sua energia muscular em funções indignas, cansativas e com remuneração abjeta.

Em outras palavras, os estratos de cima roubam o tempo dos de baixo e o investem em atividades rentáveis, ampliando seu próprio capital social e cultural (com cursos de idiomas e pós-graduação, por exemplo) e condenando a outra classe à reprodução de sua miséria.

A classe que chamo provocativamente de ralé é uma continuação direta dos escravos. Ela é hoje em grande parte mestiça, mas não deixa de ser destinatária da superexploração, do ódio e do desprezo que se reservavam ao escravo negro. O assassinato indiscriminado de pobres é atualmente uma política pública informal de todas as grandes cidades brasileiras.

A nossa elite econômica também é uma continuidade perfeita da elite escravagista. Ambas se caracterizam pela rapinagem de curto prazo. Antes, o planejamento era dificultado pela impossibilidade de calcular os fatores de produção. Hoje, como o recente golpe comprova, ainda predomina o "quero o meu agora", mesmo que a custo do futuro de todos.

É importante destacar essa diferença. Em outros países, as elites também ficam com a melhor fatia do bolo do presente, mas além disso planejam o bolo do futuro. Por aqui, a elite dedica-se apenas ao saque da população via juros ou à pilhagem das riquezas naturais.

INTERMEDIÁRIAS

Historicamente, a polarização entre senhores e escravos em nossa sociedade permaneceu até o alvorecer do século 20, quando surgiram dois novos estratos por força do capitalismo industrial: a classe trabalhadora e a classe média.

Em relação aos trabalhadores, a violência e o engodo sempre foram o tratamento dominante. Com a classe média, porém, a elite se viu contraposta a um desafio novo.

A classe média não é necessariamente conservadora. Tampouco é homogênea. O tenentismo, conhecido como nosso primeiro movimento político de classe média, na década de 1920, já revelava essas características, pois abrigava múltiplas posições ideológicas.

A elite paulistana, tendo perdido o poder político em 1930, precisava fazer com que a heterodoxia rebelde da classe média apontasse para uma única direção, agora em conformidade com os interesses das camadas mais abastadas. Como naquele momento os endinheirados de São Paulo não controlavam o Estado, o caminho foi dominar a esfera pública e usá-la como arma.

O que estava em jogo era a captura intelectual e simbólica da classe média letrada pela elite do dinheiro, para a formação da aliança de classe dominante que marcaria o Brasil dali em diante.

O acesso ao poder simbólico exige a construção de "fábricas de opiniões": a grande imprensa, as grandes editoras e livrarias, para "convencer" seu público na direção que os proprietários queriam, sob a máscara da "liberdade de imprensa" e de opinião.

A imprensa, todavia, só distribui informação e opinião. Ela não cria conteúdo. A produção de conteúdo é monopólio de especialistas treinados: os intelectuais. A elite paulistana, então, constrói a USP, destinando-a a ser uma espécie de gigantesco "think tank" do liberalismo conservador brasileiro, de onde saem as duas ideias centrais dessa vertente: as noções de patrimonialismo e de populismo.

LAVA JATO

Enquanto conceito, o patrimonialismo procede a uma inversão do poder social real, localizando-o no Estado, não no mercado. Abre-se espaço, assim, para a estigmatização do Estado e da política sempre que se contraponham aos interesses da elite econômica. 

Nesse esquema, a classe média cooptada escandaliza-se apenas com a corrupção política dos partidos ligados às classes populares.

A noção de populismo, por sua vez, sempre associada a políticas de interesse dos mais pobres, serve para mitigar a importância da soberania popular como critério fundamental de uma sociedade democrática —afinal, como os pobres ("coitadinhos!") não têm consciência política, a soberania popular sempre pode ser posta em questão.

É impressionante a proliferação dessa ideia na esfera pública a partir da sua "respeitabilidade científica" e, depois, pelo aparato legitimador midiático, que o repercute todos os dias de modos variados.

As noções de patrimonialismo e de populismo, distribuídas em pílulas pelo veneno midiático diariamente, são as ideias-guia que permitem à elite arregimentar a classe média como sua tropa de choque.

Essas noções legitimam a aliança antipopular construída no Brasil do século 20 para preservar o privilégio real: o acesso ao capital econômico por parte da elite e o monopólio do capital cultural valorizado para a classe média. É esse pacto que permite a união dos 20% de privilegiados contra os 80% de excluídos.

A atual farsa da Lava Jato é apenas a máscara nova de um jogo velho que completa cem anos.

Em conluio com a grande mídia, não se atacou apenas a ideia de soberania popular, pela estigmatização seletiva da política e de empresas supostamente ligadas ao PT —o saque real, obra dos oligopólios e da intermediação financeira, que capturam o Estado para seus fins, ficou invisível como sempre. Destruiu-se também, com protagonismo da Rede Globo nesse particular, a validade do próprio princípio da igualdade social entre nós.

O ataque seletivo ao PT, de 2013 a 2016, teve o sentido de transformar a luta por inclusão social e maior igualdade em mero instrumento para um fim espúrio: a suposta pilhagem do Estado.

Desqualificada enquanto fim em si mesma, a demanda pela igualdade se torna suspeita e inadequada para expressar o legítimo ressentimento e a raiva que os excluídos sentem, mas que agora não podem mais expressar politicamente.

Assim, abriu-se caminho para quem surfa na destruição dos discursos de justiça social e de valores democráticos —Jair Bolsonaro como ameaça real é filho do casamento entre a Lava Jato e a Rede Globo.

O pacto antipopular das classes alta e média não significa apenas manter o abandono e a exclusão da maioria da população, eternizando a herança da escravidão. Significa também capturar o poder de reflexão autônoma da própria classe média (assim como da sociedade em geral), que é um recurso social escasso e literalmente impagável.

JESSÉ SOUZA, 57, doutor em sociologia pela Universidade de Heidelberg (Alemanha), é autor de "A Tolice da Inteligência Brasileira" e "A Radiografia do Golpe" (Leya), além de professor de sociologia da UFABC
Fonte: Folhauol


Por que 11 países africanos estão construindo uma muralha de árvores




Imagem relacionada
fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Liberia_tropical_forest.jpg

A África está construindo um muro gigante de árvores.

A barreira cruza o continente de leste a oeste –e o território de 11 países– e faz parte de uma tentativa de mitigar os efeitos de mudanças climáticas.

O plantio de árvores teve início em 2007 e o objetivo é fazer com que o muro atinja 8.000 km de comprimento e 15 km de largura.

Até agora, Senegal é o país que fez o maior progresso, com 11 milhões de árvores.
De acordo com Absaman Moudouba, líder de um vilarejo do sul do país que fica nas cercanias da chamada Grande Muralha Verde, o projeto está revertendo a desertificação.

"Quando não havia árvores, o vento escavava e desgastava o solo. Mas está mais protegido agora. As folhas viram compostagem e a sombra aumenta a umidade do ambiente. Assim, há menos necessidade de água", afirma.

"Antes, havia fome e seca generalizadas aqui. Então, começou a plantação de árvores e depois um jardim onde as mulheres fazem a cultura agrícola. Antes, as pessoas costumavam migrar, mas agora elas só seguem a linha da Grande Muralha Verde em busca de emprego. Elas não partem mais", diz Moudouba.


O projeto começou em 2007 e o custo estimado é de U$ 8 bilhões (R$ 25 bilhões). Apesar de estar anos distante de ser finalizado, o Banco Mundial, a ONU, a União Africana e os Jardins Botânicos do Reino Unido seguem na busca de fundos para continuar o plantio. 
Fonte: BBC/ Folhauol

Mulheres Pretas

    Conversar com a atriz Ruth de Souza era como viver a ancestralidade. Sinto o mesmo com Zezé Motta. Sua fala, imortalizada no filme “Xica...