segunda-feira, 20 de julho de 2020

O garoto do espelho - filme nigeriano disponível da Netflix

Misturando drama e fantasia, O Garoto do Espelho usa um menino de 12 anos como guia de uma jornada mística pela África.

Na busca constante por conteúdos de diversos países, a Netflix apostou suas fichas no filme nigeriano O Garoto do Espelho. Mas é bom avisar desde já que a obra não possui nenhum ligação com o brasileiro O Menino no Espelho.
Os dois percorrem caminhos fantásticos, mas o longa que está no catálogo da Netflix é um drama fantástico pouco conhecido que se passa no meio das florestas africanas.

A história de O Garoto do Espelho

O Garoto do Espelho acompanha Tijan, um adolescente britânico que é levado para a terra natal de sua mãe, na África, após machucar outro garoto durante uma briga de rua. Quando chega na cidade de Banjul, ele começa a perseguir a aparição fantasmagórica de um garoto sorridente (que, por coincidência, aparece num espelho) e se perde da mãe.
Mas calma: por mais que uma boa parte do filme acompanhe os esforços desesperados da mãe de Tijan, não estamos falando de uma produção de terror. Muito pelo contrário…
Segundo a sinopse liberada pela própria Netflix, o jovem segue essa aparição que só ele consegue ver numa aventura cheia de elementos místicos, ritos de passagem e lições valiosas sobre si mesmo, suas raízes e o pai que ele nunca conheceu.

O diretor e o elenco do filme nigeriano O Garoto no Espelho

O filme foi escrito e dirigido pelo nigeriano Obi Emelonye (Último Voo para Abuja). É bem possível que você não conheça o nome, mas ele é um grande astro na sua terra natal.
O Garoto do Espelho
Foto: Divulgação

Essa fama permite que o longa seja estrelado outros nomes bem conhecidos do continente africano. Os principais são Genevieve Nnaji (A Estrada Nunca Percorrida), Edward Kagutuzi (Find Me in Paris) e Osita Iheme (Double Mama)
Fique de olho em Nollywood
O Garoto do Espelho não é um longa original da Netflix. É uma produção de 2011 que, assim como acontece com diversas obras independentes, foi adquirida tardiamente pelo serviço de streaming.
Entretanto, mesmo não sendo inédito, o filme é uma ótima porta de entrada para o rico e abundante cinema nigeriano.
É sempre bom lembrar que a a Nigéria tem um mercado gigantesco. Conhecido popularmente como Nollywood, a indústria cinematográfica do país produz em média 1200 filmes por ano, ficando atrás apenas de Bollywood.
É isso mesmo! Você não leu errado… Nollywood está muito na frente da toda-poderosa Hollywood quando o assunto é quantidade de filmes produzidos.
A diferença entre os dois mercados é que os principais lançamentos de Nollywood ficam presos ao sistema de home video. Em outras palavras: raramente ganham espaço nos cinemas ou nas televisões do resto do mundo.
Ainda assim, todos os longas possuem números expressivos de audiência, graças a fidelidade que o povo nigeriano tem com os produtos nacionais (ouviu, Brasil?).
É por isso que, mesmo não sendo uma produção original e exclusiva da Netflix, O Garoto do Espelho merece sua atenção. É um tipo de filme que, na maioria das vezes, fica restrito ao seu país de origem por conta da distribuição, apesar de merecer o reconhecimento do mundo inteiro.
By Flavio Pizzol

Os olhos dos mortos - Mia Couto


Estou tão feliz que nem rio. Deito-me com desleixo, bastando-me: eu e eu. O regressar de meu marido mediu, até hoje, todas as minhas esperas. O perdoar a meu homem foi medida do desespero. Durante tempos, só tive piedade de mim. Hoje não, eu me desmesuro, pronta a crianceiras e desatinos. Minha alegria, assim tanta, só pode ser errada.
Desculpe-me, Cristo: esplendoroso é o que sucede, não o que se espera. E eu, durante anos, tive vergonha da alegria. Estar-se contente, ainda vá. Que isso é passageiro. Mas ser-se alegre é excessivo como pecado mortalício.
É de noite e falta-me apenas um quase para estar sozinha no quarto. Ou, no rigor: o quarto está sozinho comigo. Nesta mesma cama sonhei tantas vezes que o meu amor vinha pela rua, eu escutava os seus Passos, cheia de ânsia. E antes que ele chegasse, corria a fechar a porta. Fosse esse gesto, o de trancar a fechadura, o meu fingido valimento. Eu fechava a porta para que, depois, o simples abrir dos olhos tivesse o brilho de um milagre. Para que ele, mais uma vez, casasse comigo. E o mundo se abrisse, casa, cama e sonho.
Durante anos, porém, os passos de meu marido ecoaram como a mais sombria ameaça. Eu queria fechar a porta, mas era por pânico. Meu homem chegava do bar, mais sequioso do que quando fora. Cumpria o fel de seu querer: me vergastava com socos e chutos. No final, quem chorava era ele para que eu sentisse pena de suas mágoas. Eu era culpada por suas culpas. Com o tempo, já não me custavam as dores. Somos feitos assim de espaçadas costelas, entremeados de vãos e entrâncias para que o coração seja exposto e ferível.
Venâncio estava na violência como quem não sai do seu idioma. Eu estava no pranto como quem sustenta a sua própria raiz. Chorando sem direito a soluço; rindo sem acesso a gargalhada. O cão se habitua a comer sobras. Como eu me habituei a restos de vida.
A semana passada foi quando o rasgão se deu. Venâncio ficou furioso quando descobriu, em estilhaços, a emoldurada fotografia na nossa sala. Era um retrato antigo, parecia estar ali mesmo antes de haver parede. Nele figurava Venâncio, ainda magro e moço, posando na nossa varanda. Pelo olhar se via que sempre fora dono e patrão. Surjo atrás, desfocada, esquecida. Sem pertença nem presença.
Ao ver a moldura quebrada e os vidros ainda espalhados pelo chão, Venâncio me golpeou com inusitada força, pontapés cruzaram o escuro do quarto entre gritos meus:
– Na barriga não, na barriga não!.
Depois, quando ele amainou, interrompi-lhe o choro e me soaram serenas e doces as palavras:
– Vê o sangue, Venâncio? Eu estava grávida…
– Grávida, você?! Com uma idade dessas!??
Arrumei vimas poucas roupas e fui, a pé, para o posto de socorro. Era manhã, fazia chuva e caía o sol. Algures, por um aí, deveria fantasiar um arco-íris. Mas eu estava cega para fantasias. Meu filho, esse primeiro que haveria de nascer, estava morto dentro de mim. As minhas mãos, ingénuas, ainda amparavam o ventre como se ele continuasse lá, enroscado grão de futuro. No passeio público, privadamente tombei. Antes que beijasse o chão já eu perdera as luzes e deixara de sentir a chuva no meu corpo.
Desmaiada, me espreitaram os dentros: gravidez não havia. Mais uma vez era falsa esperança. Esse vazio de mim, essa poeira de fonte seca, o não poder dar descendência a Venâncio, isso doía mais que perder um filho. Eu estava mais estilhaçada que o retrato da sala.
Quando despertei, me acreditei já morta, transferida para outro mundo. Morrer não me bastava: nesse depois ainda Venâncio me castigaria. Eu necessitava um outro jamais. Adivinhei as minhas fúnebres cerimónias. Venâncio e mais uns tantos, entre vizinhos e parentes. Se o meu homem me chorasse, nessa ida, seria para melhor me esquecer. A lágrima lava a sofrência. Os outros chamariam a isso de amor, saudade. Mas não era a viuvez que atormentaria Venâncio. Viúvo estava ele há muito. O que o podia atormentar era a feiura desta minha rnorte. Se de mim alguma vez se recordasse, seria Para melhor me ausentar, mais desfocada que o retrato da sala.
Venâncio não foi visitar-me ao hospital. O que eu fizera, ao dirigir-me por meu pé ao hospital, foi uma ofensa sem perdão. Até ali eu fechara as minhas feridas no escuro íntimo do lar. Que é onde a mulher deve cicatrizar. Mas, desta vez, eu ousara fazer de Cristo, exibir a cruz e a chaga pelas vistas alheias.
Ao regressar a casa, faço contas às dores. Por certo, Venâncio me espera para me fazer pagar. Por isso, me demoro na varanda como se esperasse um sinal para entrar. E ali permaneço, calada, como fazem as mulheres que, de encontro ao tempo, rezam para nunca envelhecerem.
Quando entro em casa, os estilhaços do retrato rebrilham no chão da sala. O fotografado olhar de Venâncio pousa sobre mim, assegurando os seus direitos de proprietário. Distraída, a minha mão recolhe um vidro. Na cama de casal, meu marido está enroscado, em fundo sono. Deito-me a seu lado e revejo a minha vida. Se errei, foi Deus que pecou em mim. Eu semeei, sim, mas para decepar. Se recolhi os grãos, foi para os deitar no moinho. Há quem chame isto de amor. Eu chamo a cruel dança do tempo. Nessa dança, quem bate o tambor é a mão da morte.
Lição que aprendi: a Vida é tão cheia de luz, que olhar é demasiado e ver é pouco. É por isso que fecham os olhos aos mortos. E é o que faço ao meu marido. Lhe fecho os olhos, agora que o seu sangue se espalha, avermelhando os lençóis.

Autor: Mia Couto
Conto: Os olhos dos mortos (p. 69-72)
Livro: O fio das missangas
Editora: Companhia das Letras
Ano: 2009

Mulheres Pretas

    Conversar com a atriz Ruth de Souza era como viver a ancestralidade. Sinto o mesmo com Zezé Motta. Sua fala, imortalizada no filme “Xica...