terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Poesia africana - Corsino Fortes




CORSINO FORTES


 Corsino António Fortes (São Vicente, 1933) é um escritor e político cabo-verdiano.
É licenciado em Direito, pela Universidade de Lisboa (1966). Integrou vários governos na república de Cabo Verde, país de que foi Embaixador em Portugal. Presidiu à Associação dos Escritores de Cabo Verde (2003/06). Autor de obras como Pão e Fonema (1974) ouÁrvore e Tambor (1986), a sua obra expressa uma nova consciência da realidade cabo-verdiana e uma nova leitura da tradição cultural daquele arquipélago.

Pecado Original 
Passo pelos dias
E deixo-os negros
Mais negros
Do que a noute brumosa.

Olho para as coisas
E torno-as velhas
Tão velhas
A cair de carunchos.

Só charcos imundos
Atestam no solo
As pegadas do meu pisar
E fica sempre rubro vermelho
Todo o rio por onde me lavo.

E não poder fugir
Não poder fugir nunca
A este destino
De dinamitar rochas
Dentro do peito...              
               (Claridade, 1960
  
Girassol 
Girassol
Rasga a tua indecisão
E liberta-te.

Vem colar
O teu destino
Ao suspiro
Deste hirto jasmim
Que foge ao vento
Como
Pensamento perdido.

Aderido
Aos teus flancos
Singram navios.

Navios sem mares
Sem rumos
De velas rotas.

Amanheceu!

Orça o teu leme
E entra em mim
Antes que o Sol
Te desoriente
Girassol!

Proposição  
Ano a ano
crânio a crânio
Rostos contornam
o olho da ilha
Com poços de pedra
abertos
no olho da cabra

E membros de terra
Explodem
Na boca das ruas
Estátua de pão s6
Estátuas de pão sol

Ano a ano
crânio a crânio
Tambores rompem
a promessa da terra Com pedras
Devolvendo às bocas
As suas veias
De muitos remos

De pé nu sobre o pão da manhã 
Desde a manhã os pés
Estão nus ao redor da ilha,
Nus de árvore nus de tambor
Joelhos de sol E volutas de poeira
Nos tornozelos
Em movimento

Desde o início
O tambor dos dedos
Sob o pão das pedras
O cão das artérias
preso
na voragem
Dos calcanhares Que agitam
Na terra polvorenta
o ponteiro dos membros
sobre a testa do mundo

Os membros o mundo o meridiano de permeio

O sarilho dos corvos na falésia
Anuncia-nos

À boca do povoado
Ao vento gordo sabor a fiambre hálito
de pão novo

À beira-mar erguemos as nossas costelas
À promessa pública do mar E
À beira-mar navegamos
Com mãos menos mãos
Com pés menos pés
De proteínas

O povo o poente o pão de permeio 
Então Djone! nosso Djone
fidje de Bia ou Maria
Despe a camisa
E vendida
Passeamos tal tronco
Entre palmeiras de secura
Assim
Falucho
de orgasmo
que caminha
Ao som de palmas
Instrumentos de corda
violão & viola

Há sempre o banjo o cavaquinho
Que nos interrompem
Entre duas freguesias
E dizem
       unha & bronze
Da nudez
E das árvores
Que crescem no céu da boca
E dos rios
que nascem na veia cava
E do sangue
do povo sobre o mapa

Desde o nascer E desde a nascença
Os pés o poente o meridiano de permeio

Não há fonte que não beba da fronte deste homem 
                       I 
Nas rugas deste homem
Circulam
estradas de todos os pés que emigram
Quebram-se
vivas! as ondas de todas pátrias
Anulam-se
de perfil! as chinas de todas muralhas

Na mão bíblica
No humor bíblico deste homem
crepitam de joelhos
Desertos & catedrais
Onde
deus & demónio
jogam
                   noite e dia
             a sua última cartada
E do pó da ilha à mó de pedra
Não há relâmpago
Que não morda a nudez deste homem
Nudez de liberta!
Que a dor germina
E o espaço exulta
E pela ogiva
ogiva do olho
Não há poente
Que não seja
Uma oração de sapiência

Sobre a face deste homem
o povo ergueu a praça pública
E os tambores transportam
o rosto deste homem
Até à boca das ribeiras
E ao redor
os vulcões respeitam
o silêncio deste homem

                       I I

Não há chuva
Que não lamba o osso de tal homem
À porta da ilha
Diz o sal de toda a saliva
O sol ondula oceanos no sangue deste homem

Oh cereal altivo! vertical & probo
Ainda ontem
antes do meio-dia
O vento punha velas na viola deste homem
Hoje!
A viola
De tal dor é sumarenta
E projecta
sobre as almas
a seiva
De uma árvore imensa
Oh oceanos! que ladram à boca das tabernas
Se o sangue deste homem
é tambor no coração da ilha
O coração deste homem
é corda no violão do mundo
E os joelhos
rodas que vão! hélices que sobem
com ilhas no interior

                       I I I

Sombras sobre a colina Rosto sobre o povoado
Quando
pastor & gado jogam à cabra-cega
E chifres de sol
       projectam
cidadelas no ocidente
O poente galopa a maré-alta
       E ergue
"À taça da noite
Sobre as têmporas deste homem"

Oh noite verde! oh noite violada
Que a noite não apague
A memória das cicatrizes
E cicatrizes de ontem
       Sejam
Sementes de hoje
Para sementeira E floresta de amanhã

Como Noé 
As espécies conhecem
A sílaba E a substância deste homem
Não há milho
Que não ame o umbigo deste homem
Não há raiz
Que não rasgue a carne deste homem

E na fome pública deste homem
Cresce
a ave no voo E a gema na casca
Cresce
o cabo d'enxada E a cintura da terra
Cresce
a porta do sol E o alfabeto da pedra verde
Não há fonte
Que não beba da fronte de tal homem
Que
A erecção deste homem é redonda
E tem o peso da terra grávida 
CORSINO FORTES

DE BOCA CONCÊNTRICA NA RODA DO SOL

I
Depois da hora zero. E da mensagem   povo no tambor da ilha
Todas as coisas ficaram públicas na boca da república
As rochas gritaram árvores no peito das crianças
O sangue perto das raízes. E a seiva não longe do coração.

E
Os homens que nasceram da Estrela da manhã
Assim foram
         Árvore e tambor pela alvorada
Plantar no lábio da tua porta
                                      África
         mais uma espiga mais um livro mais uma roda
                                                                  Que
Do coração da revolta
A Pátria que nasce
Toda a semente é fraternidade que sangra

*
A espingarda que atinge o topo da colina
De cavilha & coronha
                   partida partidas
E dobra a espinha
                   como enxada entre duas ilhas
E fuma vigilante
                   o seu cachimbo de paz
Não é um mutilado de guerra
É raiz & esfera no seu tempo & modo
                   De pouca semente  E muita luta
II
Poema! Que o tempo
Não peça milagres
                   por favor
Que ainda ontem
Os relógios alargavam a boca dos cemitérios
E o silêncio dobrava o sino dos séculos que tombavam
Que ainda ontem
O silêncio era lei  E a fome!  Parlamento
E o sangue! moeda na boca da colônia
E a colônia era pólvora no gatilho
         De trezentos & trezentas mil almas

III
O homem que veio de longe
         ossos & nervo nervo & olhos
Com a baleia no sangue  E a proa no coração
E planta os pés no umbigo da república
E explode árvores & tambores
                            De tantas bocas
Não é um mutilado de guerra
É um companheiro de luta

*

Não me peças milagres
                            por favor
         pede-me revolução! Camarada
Não & somente
A revolta da página sob o olho da terra
         nocturno nocturna
Mas a revolta do pão
         entre o sangue e a seiva
Mas a revolta do rosto
         entre a roda e o mundo

        
         (De Árvore & Tambor, 1986)



Corsino Fortes
A cabeça calva de Deus
Organização/prefácio de Floriano Martins.
Artista Convidado Fernando Gonçalves
São Paulo: Escrituras, 2010.  286 p. 
(Col. Ponte Velha)  ISBN978-85-7531-390-9

P.A.I.G.C.
É a potência fálica da terra + a potência famélica do povo
É o povo de coração em marcha sob a bandeira de Pidjiguiti
É a árvore de Boé + a proa do arquipélago que abafroa
No umbigo da colónia
A caravela da opressão secular
É o tambor da história + o ovo da concórdia
                      Que devolve
Á libertaria África
A dupla fatia do seu patrimônio
É o braço do povo + o corpo da terra toda ela
De peito aberto De pátria aberta
É a Estrela da manhã
No sangue
Na alvorada
Na árvore
    De todos nós

II
Amílcar!
Há hélice & sonho
             na raiz da árvore que tomba
Há sangue & ombro
             na pele do tambor que rompe
É da pedra do Sol Que move
O sangue e o rosto da pirâmide
Não há Janeiro
Não há Novembro
             Que não seja
Uma península de dor
             Entre duas bandeiras


Acto de cultura
Como o som cresce na fruta! na árvore
    Está o tambor
E contra a erosão: a política da sedução

                      E

"Se o destino do homem é o trabalho contínuo"

                                E
Não há foz para o rio da palavra amor
Cultura! toda ela
É a expresso dinâmica De um caos inicial




FORTES, Corsino.  Pão & fonema.  2ª. ed.   Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1980.  102 p.  Capa: José Cândido.  Estudo analítico de Mesquitela Lima.  Col. A.M.


De boca a barlavento

I

Esta
          a minha mão de milho & marulho
Este
          o sol a gema E não          
          o esboroar do osso na bigorna
                                       E embora
O deserto abocanhe a minha carne de homem
E caranguejos devorem
                    esta mão de semear
Há sempre
Pela artéria do meu sangue que g
  o
  t
  e
  J
  a
             De comarca em comarca
A árvore E o arbusto
Que arrastam
As vogais e os ditongos
              para dentro das violas


II

Poeta! todo o poema:
          geometria de sangue & fonema
Escuto Escuta

Um pilão fala
               árvores de fruto
ao meio do dia

E tambores
erguem
na colina
Um coração de terra batida

E lon longe
Do marulho à viola fria
Reconheço o bemol
Da mão doméstica

                    Que solfeja

Mar & monção mar & matrimónio
Pão pedra palmo de terra
                    Pão & património

Fonte: http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_africana/cabo_verde/corsino_fortes.html

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