quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Pioneira em cotas raciais, UnB tem menos de 2% de professores negros

Levantamento feito pela universidade mostra que há 65 negros docentes.
Número é baseado em autodeclaração; alunos têm cotas desde 2002.

No quinto dia de greve nacional dos docentes de ensino superior, alguns professores da Universidade de Brasília (UnB) começam a aderir a mobilização. (Foto: Wilson Dias/ABr)
Corredores do Instituto Central de Ciências, na Universidade de Brasília 
(Foto: Wilson Dias/ABr)

Pioneira entre as instituições de ensino superior na adesão ao sistema de cotas raciais, a Universidade de Brasília (UnB) tem 65 professores autodeclarados negros entre os 3.670 membros do corpo docente. O número equivale a 1,77% do total de pessoas que dão aula nos quatro campi.
Os dados são de um levantamento feito pela própria universidade, que contabiliza professores ativos e aposentados. O reitor da UnB, Ivan Camargo, afirma que o processo de mudança no corpo docente é lento, mas já está em andamento.
“Você tinha poucos negros antes nas universidades, e a UnB se posicionou claramente contrária a isso, instituindo as cotas, anos atrás. Esse processo é lento, você tem que formar as pessoas, em seguida fazer mestrado, doutorado. Não se faz isso em 15 anos. Mas tenho certeza que o início desse processo de transformação já está acontecendo”, afirmou, em entrevista ao G1.
Questionado sobre as atitudes a serem tomadas pela gestão para mudar este quadro, ele afirma que não há uma determinação institucional, mas sim o cumprimento das determinações legais. “Alguns departamentos estão fazendo cotas para estudantes de pós-graduação, por exemplo”, declarou.
Pioneirismo
A UnB foi pioneira em aplicar sistema de cotas raciais para estudantes, em 2003. Em junho do ano seguinte, a reserva de vagas era de 20%. Em abril de 2014, o número caiu para 5%. Atualmente, dos 27 mil estudantes da universidade, 2.954 são negros.
A pesquisa feita entre os professores teve como opções "branco, amarelo, indígena, pardo ou negro". O IBGE usa o termo "preto" para se referir à última classificação, e denomina "negros" os habitantes que se definem como "pretos" e "pardos".
Vice-reitor na gestão de José Geraldo, o médico João Batista diz que há uma "explicação sociológica para esses dados". Ele argumento que negros têm, historicamente, menos acesso a instituições de ensino.

Para ele, no entanto, a reserva de vagas para estudantes já é uma forma de corrigir essa desigualdade no quadro docente. “Acredito que o sistema de cotas vai corrigir essa questão parcialmente porque, para virar professor universitário, é preciso mestrado, doutorado. Há poucos negros que têm acesso a isso”.
Professor e ex-secretário da Saúde do Distrito Federal, João Batista (Foto: Marianna Holanda/G1)
Professor e ex-secretário da Saúde do Distrito Federal, João Batista (Foto: Marianna Holanda/G1)
João Batista chegou à UnB em 1970, “emprestado” pela Universidade de Uberaba. Secretário de Saúde do governo Rodrigo Rollemberg entre janeiro e julho de 2015, ele afirma que quando cursou medicina, em 1975, só havia ele e mais quatro negros entre aproximadamente 400 alunos.

“Quando você vê um professor negro, aí você já pensa que é possível”, diz Batista. Ele afirma que, naquela época, havia um único professor negro em Uberaba – o mesmo número que há na Faculdade de Medicina da UnB em 2015.
Em 2014, a presidente Dilma Rousseff sancionou a lei que prevê reserva de 20% de vagas em concursos públicos da administração federal para negros. De acordo com o Decanato de Gestão da UnB, ainda não houve concurso para professores na entidade desde que a lei passou a valer.
O decanato também informou que publicou, em 4 de dezembro, um edital de condições gerais para o concurso de docente, agora atendendo o sistema de cotas. Nesta semana, a UnB divulgou o primeiro edital com cotas raciais para a contratação de professores – dos três novos contratos da Faculdade de Direito, um será destinado a candidatos negros.

Com credencial, não há preconceito
Ex-coordenadora do curso de comunicação social, a professora Dione Moura afirma ter vivido episódios de "preconceito acumulado" em abordagens de alunos na própria universidade. Os casos aconteciam quando as pessoas "não sabiam quem ela era" e, por isso, tiravam conclusões com base no tom de pele.
“Quando chegava um estudante calouro e entrava na sala para falar comigo, se tivesse outra professora na mesma sala, o estudante sempre olhava primeiro para esta outra mesa e perguntava para a outra professora se ela era a 'professora Dione Moura'. Isto é um preconceito acumulado, histórico, no qual você arquiva na memória rapidamente que se há duas mulheres em uma sala e uma é a chefe esta chefe deverá ser a mulher branca”, diz.
Dione Moura, professora de Comunicação Social na Universidade de Brasília (Foto: Marianna Holanda/G1)
Dione Moura, professora de Comunicação Social na Universidade de Brasília (Foto: Marianna Holanda/G1)
A professora foi relatora do projeto de cotas raciais na universidade e admite que, ao adotar a política de cotas, a UnB fez algo “histórico, singular e, felizmente, irreversível”. Ela defende que hoje “há, com certeza, um número maior de estudantes negros e, também, uma presença maior da temática sobre a questão negra”.
Quando chegava um estudante calouro e entrava na sala para falar comigo, se tivesse outra professora na mesma sala, o estudante sempre olhava primeiro para esta outra mesa e perguntava para a outra professora se ela era a 'professora Dione Moura'. Isto é um preconceito acumulado, histórico, no qual você arquiva na memória rapidamente que se há duas mulheres em uma sala e uma é a chefe esta chefe deverá ser a mulher branca"
Dione Moura,
professora de comunicação social da UnB
Dione Moura atribui a isso a política de cotas, aliada ao fato de a sociedade brasileira e a comunidade internacional estarem mais atentas aos direitos das minorias. Para ela, a política de cotas é importante por dois fatores principais.
"Primeiro, garante oportunidades de futuro para jovens negros e, segundo, os colegas que passarão a conviver com pessoas de experiências culturais diversificadas, o que é enriquecedor", diz.
No campus Darcy Ribeiro da UnB, na Asa Norte, há 52 professores negros. O departamento que tem o maior número é o de Letras, com quatro. O Instituto de Português, Linguística e Línguas Clássicas, o Instituto de Química e o Departamento de Serviço Social têm três docentes negros, cada. No campus daCeilândia, sete docentes se autodeclaram negros; em Planaltina, quatro; e no Gama, um.
O que pensam os alunos
Estudante de engenharia ambiental na UnB, Augusto Silva afirma que não se sente afetado por essa estatística: “Tive um professor negro já, então acho que essa realidade não me atinge. Não é algo que vejo perto de mim”. Segundo a universidade, há um professor negro no departamento de Silva.
Sobre o ensino, o rapaz de 22 anos diz acreditar que a presença de professores negros não muda, necessariamente, o que se aprende em sala de aula. “O fato de ter poucos professores negros pode mudar o ensino, mas não quer dizer necessariamente que vá mudar”, afirma.

Já para a estudante de museologia Thanity Andrade, a falta de professores negros é um problema de representatividade. “Como é que tem tanto negro no Brasil e estamos assim? Cadê os negros na universidade, na TV?”, diz.
“Eu, particularmente, sempre busquei isso na universidade, o conhecimento, a história negra, mas sinto que nas salas de aula são dados poucos textos de autores negros”, diz Thanity, de 23 anos. A jovem também questiona o fato de disciplinas sobre a história negra na universidade serem optativas – e não obrigatórias – na grade curricular dos cursos.
Estudante de Museologia, Thanity Andrade (Foto: Marianna Holanda/G1)
Estudante de museologia Thanity Andrade (Foto: Marianna Holanda/G1
Mudar a estatística
“Quando eu era estudante de graduação, andava pelo Pavilhão João Calmon e ficava olhando pela janelas das salas de aula. Aí sempre ficava me perguntando: onde estão os professores negros? Aqui só tem branco”, diz Marcos Queiroz. Ele entrou para a pós-graduação "para mudar essa estatística" e, hoje, cursa o primeiro ano de mestrado pela Faculdade de Direito.

Militante do movimento negro, ele diz que a proporção dos professores “não é surpreendente, apesar de ser revoltante”. Queiroz entrou para o curso de direito na universidade em 2007, pelo programa de cotas raciais. Para ele, a presença de professores negros em sala de aula é muito importante na formação dos estudantes, principalmente dos negros.
“Um dos aspectos do racismo é justamente você se enxergar nos locais que a sociedade te atribui. Quando você entra em uma faculdade e vê que os postos de poder são ocupados por brancos, mesmo que subconscientemente, aquilo te diz que não é o seu lugar”, declara o jovem de 26 anos.
Marcos Queiroz, estudante da pós-graduação do Direito na Universidade de Basília (Foto: Marianna Holanda/G1)
Marcos Queiroz, estudante da pós-graduação do Direito na Universidade de Basília (Foto: Marianna Holanda/G1))
A dissertação de Queiroz trata das "raízes do mito da democracia racial”. Essa categoria de democracia, diz ele, é sustentada pela ideia de que só existem tensões sociais em países onde houve segregação ou apartheid, como os Estados Unidos e a África do Sul.

“É uma narrativa falsa, criada para se evitar como as relações raciais são, de fato, estruturadas no Brasil. Basta analisar os dados de acesso de negros à saúde e à educação, ou o número de abordagens policiais sofridas por negros, para enxergar os recortes de raça na sociedade”, diz Queiroz.
Em 2015, ele se juntou a um grupo de alunos e professores para reivindicar cotas raciais para estudantes de mestrado e doutorado – a Lei de Cotas se aplica somente à graduação. A conquista veio na seleção para o primeiro semestre de 2016: o departamento aceitou as cotas. Queiroz estipula que de 60 vagas, 10 serão para alunos negros.
"Não ter professores negros se reproduz também nos autores que você vai ler, na forma como você lida com estudantes negros e brancos. Não tem como negar”, diz. "Isso altera mesmo a forma como o professor trata casos jurídicos, como vai se referir à periferia, à cultura negra. Isso subalterniza o negro do ambiente acadêmico."

Colega de departamento de Queiroz, o estudante de graduação e coordenador-geral do DCE, Victor Aguiar, acredita que a proporção de professores negros e brancos “reflete a história do nosso país”.
Para Aguiar, o DCE tem papel de "contribuir para a questão". "Defendemos nos Conselhos Superiores medidas que relacionadas à criação de uma educação inclusiva, bem como realizamos anualmente a Semana de Todos, que debate a questão racial, mas também outras questões próximas a essa temática."
Fachada da reitoria da Universidade de Brasília (UnB) (Foto: Mateus Rodrigues/G1)
Fachada da reitoria da Universidade de Brasília (UnB) (Foto: Mateus Rodrigues/G1)
Inclusão no conteúdo
Quando as cotas raciais foram aprovadas na UnB, uma das reivindicações do movimento negro era a criação de disciplinas que incentivassem o estudo, a pesquisa acadêmica sobre a história e a cultura negra. A disciplina "Pensamento Negro Contemporâneo” surgiu em 2006.

Vinculada ao Departamento de Extensão (DEX), a matéria foi ofertada em todos os semestres desde então, com 54 turmas. Segundo a universidade, até o segundo o final de 2015, 1.321 estudantes já passaram pela classe.
“Neste momento, estamos em negociações com algumas unidades acadêmicas para que assumam a disciplina. O Decanato de Extensão não tem como fazer concurso público para lotar esses professores. No momento, atuamos professores visitantes e voluntários”, diz a professora e decana de Extensão, Thérèse Hoffman..
  • A universidade tem que ser partilhada e não só colorida com estudantes negros, não é essa a proposta da política de cotas
Ana Flauzino,
professora substituta da UnB
Para a militante do movimento negro e professora visitante (contratada pela UnB apenas para ministrar essa disciplina) Ana Flauzina, o caso é outro: “Não há uma vontade institucional dos departamentos de aderirem a esse projeto”.  Segundo Ana, a universidade “tem que ser partilhada e não só colorida com estudantes negros, não é essa a proposta da política de cotas”.

A proposta da política de cotas, na perspectiva de Ana, não prevê apenas a reserva de vagas, mas também pela criação de disciplinas e grupos de pesquisa que estudem academicamente a história, cultura e o conhecimento negro.

Professora de Marcos Queiroz em 2014, Ana também é negra e fez graduação e mestrado na UnB. Ela lecionou “Pensamento Negro Contemporâneo” por três semestres. Dez anos após a graduação, ela avalia que a UnB “ainda não entende a importância de ter professores negros lá dentro”.

“Ela [a universidade] quer se mostrar como avançada, mas ainda é muito atrasada nisso”, afirmou a militante. Por ser professora visitante, Ana não integra o quadro dos 65 professores negros da UnB.

Usp, Unesp, Unicamp e Ufrj
A baixa representatividade de professores negros se repete em outras universidades listadas no ranking das melhores instituições da América Latina, no ano passado. Ficaram mais bem colocadas que a UnB a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ufrj) e a Universidade Estadual Paulista (Unesp).
  • Unicamp: 14 dos 3.464 professores se autodeclaram negros
Destas, apenas a Unicamp, que ficou em segundo lugar no ranking, também reúne dados de raça: dos 3.464 professores ativos e aposentados, apenas 14 (0,4%) se autodeclararam negros em 2015. Para
Ana Flauzino, a ausência de levantamentos em outras instituições é “evidência de que não estão dispostas a dialogar, a retrabalhar essa segregação”.
Marianna Holanda
Fonte:http://g1.globo.com/

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