quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Nova geração de marroquinos tenta resgatar tradição de contar histórias

Era uma vez uma praça em Marrakech onde contadores de histórias se reuniam no fim da tarde, envolvidos pela fumaça dos incensos e pela luz das lanternas, para narrar os causos de reis, princesas e gênios da lâmpada.

As décadas se passaram. Vieram a internet, os smartphones e as caixas de som.
A praça Jemaa al-Fnaa, outrora centro da vida social de Marrakech, virou atração turística. Os contadores de histórias desapareceram.

Seria um conto sem final feliz. Mas uma nova geração de marroquinos, preocupados com o sumiço de suas tradições, se organiza para devolver os narradores ao lugar que tinham décadas atrás.

"Cresci ouvindo os relatos da minha avó e da minha mãe, e, aos nove anos, passei a ir à praça ver os contadores de histórias", diz à Folha Mehdi El Ghaly, um dos representantes desse movimento.

arquivo pessoal
contadores de historias em praças de Marrocos. Foto: Arquivo pessoal ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
O contador de histórias marroquino Jawad El Bied, 24

"Hoje, aos 21 anos, não encontro mais contadores. Só há macacos e encantadores de serpente. Essa não é a cultura marroquina", afirma.

O jovem se refere a alguns espetáculos hoje comuns na praça, mas sem relação com a tradição local. Os encantadores de serpentes, por exemplo, faturam ao cobrar de turistas por uma foto.

Ghaly faz parte de um grupo de jovens chamado Hikayat Morocco. "Hikayat" é o termo utilizado, em árabe, para "histórias". Eles se apresentam ao público e organizam oficinas para transmitir essa prática adiante.

Para ele, que estuda linguística e inglês, as histórias tradicionais são a chave para entender essa cultura. "As pessoas conhecem o cuscuz, mas a cultura marroquina é a tradição, as histórias", afirma.

Nessas narrativas, diz, são transmitidas ideias como "não subestime as pessoas pequenas". A maior parte das histórias é cômica e inclui uma lição de moral.

"Há uma sobre como um homem usa as mulheres, mas no fim elas o ridicularizam diante de todo o reino. Isso mostra que as mulheres são mais astutas", conta Ghaly.

Todas as segundas e quintas-feiras, um outro grupo de contadores de histórias se reúne no Cafe Clock, a dez minutos da Jemaa al-Fnaa. Com o mesmo intuito de manter viva a tradição, apresentam-se em árabe, inglês e francês.

O projeto, ali, está organizado em torno de Ahmed Elzzarghani, 75, um dos últimos contadores de histórias de Marrakech. Elzzarghani, que começou na profissão aos 19 anos, tinha desistido da prática diante do pouco interesse das novas gerações.

"As pessoas não prestam mais atenção. Estamos velhos, e as praças estão cheias de música. Ninguém nos ouve", ele afirma à Folha.

Elzzarghani guarda na memória algumas dezenas de histórias. Agora, as ensina para o grupo de jovens com quem se apresenta no Cafe Clock.

Uma das aprendizes é Malika Ben Allal, 24. "Minha avó era uma grande contadora de histórias. Foi minha inspiração", diz a estudante. "Eu quis manter a tradição."
Com uma atualização: a avó de Allal não podia se apresentar, por ser mulher em uma sociedade tradicional. Com a modernização, a jovem encontrou seu espaço.

Outro dos aprendizes de Elzzarghani é Jawad el Bied, 24. Ele recentemente viajou até o Irã para participar de um encontro internacional de contadores de histórias.
"As pessoas lá apreciam mais essa tradição", diz. "Usam música e técnicas de teatro. É cheio de ação."

'VAMOS LUTAR'

Assim como seu mestre, Bled lamenta a falta de interesse dos jovens pela tradição. "Disputamos com as mídias sociais, e elas estão ganhando. Mas vamos lutar."

O projeto foi montado ali pelo proprietário do Cafe Clock, o inglês Mike Richardson, que vive há mais de uma década no Marrocos.

Os contadores de histórias recebem cerca de R$ 60 por apresentação. Uma história dura em média uma hora. Quando são performances privadas, o pagamento chega a até R$ 200 por um dia.

"É incrível ser reconhecido por apoiar uma tradição que estava desaparecendo", afirma o empresário. "A propaganda também é excelente."

Para Richardson, os contos fazem parte de uma experiência comum às culturas. "Todos herdamos histórias que nossas mães nos contavam."
DIOGO BERCITO

Fonte: Folhauol

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