terça-feira, 4 de agosto de 2015

Escritora Noemi Jaffe mostra por que 'Macunaíma' é 'intraduzível'


Editoria de arte/Revista sãopaulo

POR NOEMI JAFFE

Há algumas semanas, como que do nada, recebi uma carta do Japão. O remetente, de quem nunca tinha ouvido falar, é um professor de japonês em uma universidade japonesa. Ele me conta que, nos anos 70, estudou língua portuguesa no Rio de Janeiro e que, na época, deparou com "Macunaíma", livro que "entendeu completamente" e pelo qual se apaixonou.

Traduziu três capítulos para o japonês, mas a editora de então não teria aprovado sua tradução. "Deixei", ele conta. Hoje, depois de quase 40 anos, ele está retomando a tradução, praticamente terminada, mas resta uma única dúvida e ele, depois de pesquisar meu email e não encontrar, resolve escrever para a PUC, onde já trabalhei. Sua dúvida se expressa assim: "O que é que é feixo?"

Depois de ler todo o "Macunaíma" e traduzi-lo inteiro para o japonês, o professor me pergunta -e juro que não estou inventando- "o que é que é feixo?"
Ele não sabe, mas raras vezes -depois de muitos anos ensinando e estudando literatura brasileira- li algo tão macunaímico, e Mário de Andrade, se tivesse lido esta pergunta, teria dado pulos de um entusiasmo profético e sairia para escrever mais um capítulo dessa rapsódia que não tem fim.

"Macunaíma" foi escrito em Araraquara, no sítio de um parente de Mário de Andrade, no ano de 1926. O nome do personagem é baseado em um livro escrito pelo antropólogo alemão Koch-Grünberg (1872-1924), que viajou por toda a Amazônia, onde deu com essa alcunha, que significaria "o grande mau".
Mário de Andrade, mesclando folclore, brasileiro e europeu, a vida pessoal, a antropologia, a história antiga e recente do país, a geografia nacional, as línguas popular e erudita, ditados, provérbios e suas leituras da sociologia brasileira da época criou não um grande, mas talvez um pequeno malvado brasileiro.

Macunaíma é, até hoje, um "sem caráter" que representa nossa forma de sermos um e sermos outro, de estarmos aqui e lá ao mesmo tempo, agora e então.Como muitos outros personagens da história da literatura que acabam por transcender seus criadores, penso que o mesmo se passa nesse caso particular.

Pois se Mário quis criar, com Macunaíma, uma crítica à mutabilidade interesseira do brasileiro, seu protagonista se transforma, à sua revelia, em algo diferente disso. Um negro, branco e índio, com cabeça de criança, ingênuo e esperto, solidário e egoísta, amoroso e mimado. Um Grande Otelo que, mais tarde, o próprio encarnou como ninguém.

A teoria literária, com Gilda de Mello e Souza e Haroldo de Campos e vários outros, também se perguntou "o que é que é Macunaíma?", com a primeira vendo nele a derrota do brasileiro do interior que migra para a cidade e o último reconhecendo, no personagem, a vitória da palavra narrada, numa disputa argumentativa em que ambos, feliz e infelizmente, têm razão.

E o professor japonês, com sua formulação charadística, não sabe, mas deve ter sido cutucado pelo próprio Macunaíma que, a essa hora, está lá no Japão, longe daqui e no futuro de Mário, rindo muito por ter impedido o professor de traduzir a rapsódia com perfeição.

A propósito: não sei o que é que é feixo. 

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/

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