quarta-feira, 3 de junho de 2015

“Senzala nunca mais”: intervenção artística contesta nome de restaurante em SP

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Durante a escravidão, as senzalas eram lugar de sofrimento, violência e opressão dos negros. Em região nobre da capital paulista, dão nome a um restaurante de elite. Artistas realizaram performance para questionar a inversão de valores e reivindicar o respeito à sua dor
Por Anna Beatriz Anjos Do Portal Fórum

Eles entraram. Sentaram-se, pediram cervejas e porções. Dividiam-se em alguns grupos, espalhados por mesas diferentes no salão. Durante cerca de quarenta minutos, passaram desapercebidos aos olhos de quem ali estava. Parecia uma terça-feira de confraternização entre amigos.

Um olhar mais atento, porém, perceberia que eram os únicos negros no local, cercados por um mar de gente branca. Seus únicos irmãos de cor eram os garçons e a faxineira. Nada novo para um estabelecimento no Alto de Pinheiros, região nobre de São Paulo. O mais chocante ali não era, entretanto, a realidade de segregação que, em vez de revoltar, já se banalizou. Era o nome do restaurante, uma imensa inversão de sentidos: Senzala, que é, para muitos, uma expressão da Casa Grande dos tempos de escravidão oficial.

Três deles saíram de cena por alguns segundos, caminharam até o banheiro. Eram Ana Musidora, Juliana Piauí e Érickson, professores e artistas. Ao retornar, usavam máscaras de ferro nos rostos e correntes nos pés. Não demorou para que chamassem a atenção de quem calmamente degustava seus bolinhos de bacalhau, entre um gole e outro de vinho ou chope.

Caminhavam por entre as mesas e o barulho do metal arrastando no chão não podia ser desprezado. Tentavam comer e beber o que o garçom lhes havia trazido anteriormente, mas a armadura atrelada à face não permitia. Um capataz, também personagem, acompanhava os atores com um chicote, que de minuto em minuto estalava em suas costas. Ao final, gritos de “Eu tenho cabelo duro, mas não miolo mole” tomaram conta do local.

A reação das pessoas? Algumas miravam as cenas, com expressão meio perplexa, meio curiosa, tentando ligar os pontos para compreender, com ar de estranhamento, o que se passava diante de seus olhos. Outras – muitas – riam. Gargalhavam descompromissadamente, transformando em piada a situação.

Deparar-se com a representação pulsante da escravidão no Brasil pode ser um choque de realidade histórica sem volta para nós, brancos, outrora ativamente responsáveis pelo massacre de negros e negras, e hoje no mínimo privilegiados em todos os sentidos por suas implicações. Prestar atenção à performance dos atores significava sentir a culpa, mesmo que sem identificá-la com clareza; era encarar o peso do protesto, o peso de séculos enriquecendo às custas de um povo roubado, violentado e subjugado. Era, nem que por alguns segundos, correr o risco de ter empatia por aqueles corpos, imaginar-se no lugar deles e de todos os seus semelhantes. Para quem acredita em meritocracia e em democracia racial, isso é inimaginável e presumiria um confronto implacável às suas convicções fantasiosas. Para quem não crê em nada disso e tem o mínimo de sensibilidade à questão negra, é uma afronta à sua própria dignidade.

“O riso mostra o quanto a elite paulistana e brasileira é complacente. Ela tem um fetiche sobre a dor de alguns povos, principalmente do povo negro. Ela acha engraçado, ridículo, acha que não tem dor. Ela ignora essa dor”, afirma Érickson. “Não à toa você tem um restaurante que funciona há mais de trinta anos com esse nome e as pessoas não fazem uma reflexão sobre o que significava uma senzala, que é um lugar de estupro, de morte, enfim, de dor, violência, punição.”

Juliana Piauí relembra um momento de embate entre ela e os clientes. “Teve uma fala, inclusive, de que eles estavam sentindo os direitos deles muito feridos (…), que nós estávamos sendo agressivos e que eles estavam se sentindo agredidos”, destaca. “Como se não fosse agressivo crescer numa cidade como a de São Paulo, passar por essa avenida e ter que se deparar com a representação da nossa dor.”
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No meio da manifestação, cartazes foram empunhados com os dizeres “Hiroxima Grill” e “Restaurante Auschwitz”. Segundo o produtor cultural e ator Max Muratorio, eles tinham objetivo definido. “Quem faria uma festa de aniversário em Auschwitz? Ou em um restaurante [chamado]Hiroshima? Essa e a ideia. Já que eles não conseguem entender o lugar do negro, do indígena, a gente se coloca no mesmo lugar deles. O lugar dos privilégios, onde os brancos têm a dor que tem importância. Então, você relaciona a Auschwitz, a Chernobyl, a Hiroshima, que são desgraças que aconteceram com seus irmãos, com seus povos, e talvez assim, quem sabe, eles possam se aproximar da gente”, explica.

Mais do que meter o dedo na ferida daqueles que não veem problema em frequentar um local que naturaliza o espaço onde ocorreu grande parte dos horrores da escravidão, a intervenção artística buscou representar um grito de liberdade do povo negro, protagonista da História mal contada. “O que aconteceu aqui é só a síntese de coisas que a gente vem elaborando há muitos anos. Discutimos muito a questão da identidade, a condição do negro no país”, disse Érickson. “Acho que eles não vão se aproximar [da nossa dor] porque não entenderam que não estamos na senzala. Estamos estudando, fazendo arte, militando, formando nas escolas. Saímos da senzala, essa é a questão essencial”, coloca Ana Musidora.

A intervenção terminou com carros de polícia na porta do restaurante. Enquanto isso, na rua, as cerca de trinta pessoas que participaram da ação comemoravam. Pelo menos por uma noite, a normalidade forjada da Casa Grande foi quebrada.


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