sábado, 7 de dezembro de 2013

Deixa passar o meu povo - Noémia de Sousa

Noite morna de Moçambique
e sons longínquos de marimbas chegam até mim 
-- certos e constantes -- 
vindos nem eu sei donde. 
Em minha casa de madeira e zinco, 
abro o rádio e deixo-me embalar... 
Mas as vozes da América remexem-me a alma e os nervos. 
E Robeson e Maria cantam para mim 
spirituals negros do Harlem. 
Let my people go 
-- oh deixa passar o meu povo, 
deixa passar o meu povo --, 
dizem. 
E eu abro os olhos e já não posso dormir. 
Dentro de mim soam-me Anderson e Paul 
e não são doces vozes de embalo. 
Let my people go. 

Nervosamente, 
sento-me à mesa e escrevo... 
(Dentro de mim, 
oh let my people go...) 
deixa passar o meu povo. 

E já não sou mais que instrumento 
do meu sangue em turbilhão 
com Marian me ajudando 
com sua voz profunda -- minha Irmã. 

Escrevo... 
Na minha mesa, vultos familiares se vêm debruçar. 
Minha Mãe de mãos rudes e rosto cansado 
e revoltas, dores, humilhações, 
tatuando de negro o virgem papel branco. 
E Paulo, que não conheço 
mas é do mesmo sangue e da mesma seiva amada de Moçambique, 
e misérias, janelas gradeadas, adeuses de magaíças, 
algodoais, e meu inesquecível companheiro branco, 
e Zé -- meu irmão -- e Saul, 
e tu, Amigo de doce olhar azul, 
pegando na minha mão e me obrigando a escrever 
com o fel que me vem da revolta. 
Todos se vêm debruçar sobre o meu ombro, 
enquanto escrevo, noite adiante, 
com Marian e Robeson vigiando pelo olho luminoso do rádio 
-- let my people go, 
oh let my people go

E enquanto me vierem do Harlem 
vozes de lamentação 
e meus vultos familiares me visitarem 
em longas noites de insônia, 
não poderei deixar-me embalar pela música fútil 
das valsas de Strauss. 
Escreverei, escreverei, 
com Robeson e Marian gritando comigo: 
Let my people go, 
OH DEIXA PASSAR O MEU POVO. 

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