terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Poesia africana - José Craveirinha



JOSÉ CRAVEIRINHA
(1922-2003)

Nasceu em Lourenço Marques (atual Maputo, Moçambique).

Autodidata, desempenhou diversas actividades tais como funcionário da Imprensa Nacional de Lourenço Marques, jornalista, futebolista, tendo também colaborado em diversas publicações periódicas, nomeadamente O Brado AfricanoItinerárioNotícias, Mensagem,Notícias do Bloqueio e Caliban.

Foi preso pela PIDE, mantendo-se na prisão durante 5 anos. Posteriormente após a independência de Moçambique foi membro da Frelimo e presidiu à Associação Africana.

Recebeu o Prêmio Alexandre Dáskalos, o Prêmio Nacional, em Itália, o Prêmio Lótus, da Associação Afro-Asiática de Escritores e o Prêmio Camões, em 1991. É um dos mais reconhecidos poetas da língua portuguesa e um dos maiores escritores africanos.
Obra: Xibugo, 1964; Cântico a um Dio de Catrane, 1966; Karingana Ua Karingana, 1974;
Cela 1, 1980 e Maria, 1988

Veja outros poemas do autor em: http://geocities.yahoo.com.br

Veja também o poema “Maria & José”, de Antonio Miranda, em homenagem ao poeta José Craveirinha: http://www.antoniomiranda.com.br


UM HOMEM NUNCA CHORA

Acreditava naquela história
do homem que nunca chora.

Eu julgava-me um homem.

Na adolescência
meus filmes de aventuras
punham-me muito longe de ser cobarde
na arrogante criancice do herói de ferro.

Agora tremo.
 E agora choro.

Como um homem treme.
Como chora um homem!


POETA ATIRADO AOS BICHOS

Meu amor:
Nem tu percebes ainda o bater
ansioso dos tendões nos afinados
motores bem mainatos passando a ferro
o capim debaixo das obscenas chapas
na maquilhagem embelezando
a escarlate as picadas.

E
tua ostra de chamas
cerra-me no seu íman de con-
chá palpitando as mornas pétalas do teu gerânio
um belo coiso de gemidos no tálamo
de capim onde alongamos os nossos
pesadelos em fragmentos
dispersos na mata à ferroada
dos insectos de obuses.

Porque
confesso-te, meu amor
não são bem propriamente o que eu desejo
estes pervertidos versos sem rima e sem nada
mas unicamente nacos fixes de um poeta
de carne em sangue no meio deste zôo
atirado aos bichos!


SEM TÍTULO

Não sei se existe Deus.
Mas se Deus existe
Ele está com toda a certeza
a comer comigo esta farinha
no mesmo prato.

                            (1966)


APARÊNCIAS

Amigos!
Apesar das aparências
estarem de acordo com as circunstâncias
não sou eu quem morre de medo.

Antes
Durante
E após os interrogatórios
(Inclusive nos quotidianos trajectos de jipe)
a minha língua é que se torna de papel almaço
E minhas desavergonhadas rótulas de borracha
Coitadas é que tremem.

Ao bom evangelho dos cassetetes
ouvir avoengos pássaros bantos
cantarem algures nos ombros
velhas melodias de feridas.

E depois
à sedutora persuasão das ameaças
pela décima segunda vez humildemente
pensar: Não sou luso-ultramarino
SOU MOÇAMBICANO!

Será suficiente esta confissão
Sr. Chefe dos cassetetes
da 2ª. Brigada?


PARA UM IDÍLIO CLANDESTINO

Deixa-me que te beije
ao de leve o rosto na manhã nova
e meus dedos acariciem
nervosos a curva meiga do teu seio.

Meu amor:
o senso fragmenta-me a sensibilidade
e o que seu sinto-o
larva plena do que há-de vir.

Tu e eu
envolvidos nesta aventura
esperamos o comprometido instante
nalguma parte de nós.

Vai. Não te esqueças.
Nesta manhã do Infulene
ao quilômetro dez da liberdade
o sobrenatural acontece:
É assim.
Eu preso.
E tu minha mulher
depois da visita partes à vontade
mas não livre.
                            (Julho de 1967)


KARINGANA UA KARINGANA*

Este jeito
de contar as nossas coisas
à maneira simples das profecias
— Karingana ua Karingana —
é que faz o poeta sentir-se
gente.

E nem
de outra forma se inventa
o que é propriedade dos poetas
nem em plena vida se transforma
a visão do que parece impossível
em sonho do que vai ser.

— Karingana!


*Obs. Fórmula clássica de iniciar um conto e que possui o mesmo significado de “Era uma vez”.


CANÇÃO NEGREIRA

Amo-te
com as raízes de uma canção negreira
na madrugada dos meus olhos pardos.

E derrotas de fome
nas minhas mãos de bronze
florescem languidamente na velha
e nervosa cadência marinheira
do cais donde os meus avós negros
embarcaram para hemisférios da escravidão.

Mas se as madrugadas
das minhas órbitas violentadas
despertam as raízes do tempo antigo ...
mulher de olhos fadados de amor verde-claro
ventre sedoso de veludo
lábios de mampsincha madura
e soluções de espasmo latejando no quarto
enche de beijos as sirenas do meu sangue
que meninos das mesmas raízes
e das mesmas dolorosas madrugadas
esperam a sua vez.


* fruto comestível de planta rasteira.


EM VEZ DE LÁGRIMAS

Só um choro em seco
põe no vértice da minha dor
o mais intenso
auge do luto.


DE PROFUNDIS

Extenso dia taciturno de nuvens.
Nas ramadas passarinhos de mágoa
lacrimejando chilros. Um braçado
polícromo de flores
perfumando
De profundis
de coroas.

Tão duro
assim lacônico
nossos adeus de rosas, Maria. 

MÁQUINA ELÉCTRICA DE COSTURA
Quando finalmente Maria
menos havia de cansar-se a coser
sua nova máquina eléctrica de costura
em funesto ilogismo encerrada
 noutro esmero de alinhaves
solidária se prosternou
desusada.

Infeliz
máquina de costura.



Extraídos de:  CRAVEIRINHA, José.  Obra Poética.  Maputo: Direcção de Cultura, Universidade Eduardo Mondlane, 2002.  367 p.
Fonte: antoniomiranda

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