terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Do Apartheid à democracia multirracial


TAYRONE DI MARTINO
Apartheid
A cultura africana é marcada pelo culto à ancestralidade da história. Desde os ritos de iniciação até o governo das tribos, realizado por anciãos, a vivência comunitária é o registro mais preciso da tradição de um povo densamente cultural. Quando se reúnem é para celebrar a época sagrada dos antepassados: os legítimos fundadores e heróis do clã. Também se agrupam para evocar os valores que não devem ser esquecidos, sob a pena de perder o sentido da própria existência.
A coragem e a valentia do sistema tribal são manifestadas na dança, nas orações, nos trajes e no profundo respeito à dignidade humana. Um olhar panorâmico nos leva à conclusão de que é uma cultura que convoca à vida moral da retidão, segundo os moldes da tradição africana. Obviamente, há determinadas práticas primitivas e inadmissíveis, no que se refere aos sacrifícios rituais de crianças, que não podem ser associadas à bonita realidade do Continente, uma vez que está situada tão-somente na região da Uganda.
Foi nesse cenário de territorialidade e sacralidade que nasceu Rolihlahla Dalibhunga Mandela, mais conhecido como Nelson Mandela, em 18 de julho de 1918. Sua origem se deu no clã Madiba, Sudeste da África do Sul. Ali cresceu em uma família tribal, unida pelo parentesco de um ancestral comum à etnia Xhosa: o segundo maior grupo étnico do país. Formado em Direito, Mandela assumiu a luta contra o apartheid: um sistema de segregação político e racial, que vigorou na África do Sul, de 1948 a 1994.
O vocábulo apartheid é da língua neerlandesa, sendo muito utilizado pelos colonizadores britânicos e holandeses, instalados na África, por meio da linguística do africânder. Pouco se fala sobre isso, mas a antiga Igreja Reformista Holandesa também atuou no sentido de colocar os brancos, chamados de 'bôer', na função de povo escolhido bíblico, em contraposição aos negros, criando uma injusta denominação racialmente separada.
Imposto por uma minoria branca à maioria negra do país, o regime segregacionista se fundamentava ante três bases: 1. A Lei de Classificação de Raça; 2. A Lei de Casamentos Mistos e a 3. A Lei de Áreas de Grupos. Tal embasamento fez com que a união matrimonial, entre etnias diferentes, se tornasse crime. Além disso, determinados bairros foram criados às margens dos grandes centros, de modo que os negros só podiam entrar nas terras dos brancos para fornecer mão-de-obra barata. O tratamento desigual e cruel chegava ao cúmulo de exigir que o negro cedesse o lugar ao branco nos assentos dos ônibus. Placas delimitavam até onde os negros podiam se aproximar. A eles também não era permitido o exercício democrático do voto. Até seus patrimônios foram confiscados pelo governo.
Por defender pacificamente os valores do povo africano e por sustentar a igualdade das etnias, Mandela foi condenado à prisão perpétua, permanecendo preso durante 27 anos. Só foi libertado em 1990 e, quatro anos depois, é eleito presidente da África do Sul, com 62% dos votos. Hoje, a democracia sul-africana encontra-se estabilizada. Não há qualquer indício de terrorismo, mas a luta contra a pobreza e a corrupção ainda são males a serem combatidos.
O legado de Mandela ensina a todos que não basta ser um líder político. É necessário, antes, assumir com a própria vida a causa que se defende. Elevado ao cargo de chefe do Executivo, ele poderia ter sido tão déspota quanto o foram seus tiranos. Ainda assim, Mandela exerceu o perdão, como forma de unificar o seu povo, gerando não só uma Comissão da Verdade, mas uma Comissão da Verdade e da Reconciliação. Lutou, ao mesmo tempo, contra a dominação branca e não permitiu a vingança, ou seja, a dominação negra. Sempre esteve preparado para morrer por aquilo que acreditava. Definitivamente, foi um homem leal à democracia sul-africana, sem deixar de ser fiel à própria consciência.
Em terras tupiniquins, me parece que alguns ainda não compreenderam a grandeza de Nelson Mandela. A Lei Áurea, assinada em 13 de maio de 1888, pode ter extinguido a escravidão no solo brasileiro, porém não suprimiu as mazelas do racismo e da discriminação. Como é possível que um país, formado pelo maior contingente de negritude do Ocidente, ainda não veja os seus filhos negros, pardos e mulatos presentes nos mais variados setores da sociedade?
Olhemos à nossa volta e sejamos honestos o suficiente para admitir que os negros são tratados como invisíveis. Onde eles estão? Nas universidades, nas multinacionais, na televisão, nas propagandas das marcas e grifes, no parlamento, no judiciário, nos laboratórios de pesquisa não costumamos encontrá-los na mesma medida que os brancos. Então, volto a insistir: onde se encontram? Eles permanecem, na maioria das vezes, no lugar dos piores empregos, no espaço dos indignos salários, nas conjunturas onde a vida é desumanizada. Diante de uma sociedade que esconde o fato de ser racista, os negros são obrigados a negar sua identidade étnica para serem vistos e aceitos. Sentimento mais vil não há.
E depois, as classes elitizadas, sobretudo, aquelas que exerceram a dominação ideológica do racismo, ainda questionam a política federal de cotas, universitárias e de concursos públicos, destinadas a índios e negros, como se o país não tivesse uma dívida histórica com ambos os povos. Assim que a Lei Áurea foi assinada, os negros foram esquecidos pelo Estado. Daí que se deu à origem do desemprego sistemático, superado somente no governo Lula-Dilma (2003-2013).
Aprendamos, portanto, com a herança de Mandela, que os negros não querem a nossa caridade, muito menos o nosso assistencialismo. Esperam apenas que seus direitos civis e sociais sejam reconhecidos. Finalizo com as palavras do meu colega de profissão, o jornalista Edilson Lenk: "Em momento algum se pode esquecer que esses negros não vieram para cá participando de qualquer 'fluxo migratório'. Eles vieram sob correntes, foram arrancados de sua terra, de suas famílias, de suas entranhas. De homens e mulheres livres passaram à condição de animais destinados ao trabalho não remunerado. Foram açoitados, assassinados, estuprados, vilipendiados em sua identidade, extorquidos de seus direitos à nacionalidade, religião, cultura e valores. Enquanto construíam, com humilhação e sangue, as riquezas de uma nação, nunca participaram dessas riquezas. E nunca receberam qualquer pedido de desculpas pelo genocídio que a nação branca impingiu a seu povo".
(Tayrone Di Martino, jornalista, vereador – Goiânia/PT)
Fonte: DM

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Mulheres Pretas

    Conversar com a atriz Ruth de Souza era como viver a ancestralidade. Sinto o mesmo com Zezé Motta. Sua fala, imortalizada no filme “Xica...