A imagem que se tem quando se abeira de Milton Nascimento é a de um patrimônio arquitetônico mais valioso, que se instaura da invenção de um cais entre o barroco de Minas e a modernidade proposta pela vanguarda antropófaga dos bandeirantes paulistas dos primórdios do século 20.
Por Wander Lourenço*, Correio do Brasil
Por Wander Lourenço*, Correio do Brasil
Milton Nascimento
Imagina-se que o compositor nascido no Rio de Janeiro há setenta anos cunhasse o passado histórico em canções contemporâneas, por intermédio das tonalidades dos ritmos sacros das ermidas e catedrais do cancioneiro popular, apto a transcender o cenário árcade da Vila Rica de aleijadinhos, joaquins, claudios e gonzagas, em diálogo com cânticos negros provindos da arqueologia das senzalas do Ciclo do Ouro dos Gerais.
Neste contexto simbólico, o sublime intérprete se arvora a ser o Deus da raça da mitologia greco-mineira que, por timbres e mistérios, transborda do barro das lavras de aluvião até esbarrar em artesanato lírico das lavadeiras do Vale do Jequitinhonha. Ao dialogar com as vertentes do interior do país litorâneo, pode-se até dizer, podes crer que sem se considerar um sacrilégio artístico, que o garimpeiro das canções de trabalho dos confins das Minas Gerais se aproximou mais de Villa-Lobos do que de Antônio Carlos Jobim e dos tropicalistas baianos Caetano Veloso e Gilberto Gil. Sobre o embrionário cego cantador renascentista de Calix bento e Sentinela, a inigualável gaúcha Elis Regina sintetizou-te com maestria ao dizer que, se Deus humanamente pouco altivo se pronunciasse, decerto seria por sua celestial voz de arcanjo negro. Aliás, entre a mitologia e o homem, à voz do Criador suprimiu-se uma réstia de alfabeto que se refaz pelas letras l e n – Mito / Milton, de modo a traduzir-se, biblicamente, por labirínticos becos e vielas de Diamantina, a Aleijar-se de um assimétrico vocábulo posto em dicção da Santa Teresa do Clube da Esquina, por Wagner Tiso, Marcio e Lô Borges, Beto Guedes, Toninho Horta ou Fernando Brant.
Por sua escultura humana talhada em pedra-sabão por sobre o chão pé de moleque de Sabará, São João del-Rei, Congonhas ou Tiradentes, deu-se então com o Nascimento do Milton a reinvenção de Minas Gerais, como se o menino negro se refugiasse por Áfricas menores até aportar em estábulo ou farol em alto-mar do sertão. Ao ressoar das harpas celestes, arrebatadores trompetes divinos e cítaras angelicais à mão direita dos súditos Reis Magos da folia mineira, a lidar com o mais afinado instrumento a ser aventado pelo Criador, a tua voz de sabiá-pátria pousada em buriti-gerais. És Milton Nascimento, sobretudo, quando insurges no horizonte, alferes inconfidente sem indumentária ou mosquete, em claridade por um vozear ou alarido de relâmpago, a avizinhar-se ao edênico espaço terrestre das múltiplas travessias que, por igarapés das palmas das mãos ciganas, impavidamente soberanas desaguam, em disfarces mambembes, pela voz do Rio Chico, qual água doce que brota e jorra aos pés-curupiras de um incontestável ídolo eterno.
Tu, São Francisco impalpável, Milton, afluente dos acordes de uma existência primordial, pois que és o espetáculo do nascimento de uma aurora, que se achega ao pôr do sol pelo prelúdio de um recital silencioso do Cuitelinho, em homenagem à flor da criação, por sobre a qual nos debruçamos por arroubos efêmeros de humanidade. Enfim, por sobre a inebriável ilusão da presença que, miticamente, se afigura por sublimes traços de glória em tão humilde palco-manjedoura, sem perspectivas de salvação ou quimera, reunimo-nos a declamar, por pão, vinho e hóstias, a oração menos óbvia proferida, em púlpito, bailes e feiras, por magnífico gorjeio humano, em cor, em sombra, em luz.
*Wander Lourenço de Oliveira, doutor em letras pela UFF, é escritor e professor universitário. Seus livros mais recentes são ‘O enigma Diadorim’ (Nitpress) e ‘Antologia teatral’ (Ed. Macabéa).
Neste contexto simbólico, o sublime intérprete se arvora a ser o Deus da raça da mitologia greco-mineira que, por timbres e mistérios, transborda do barro das lavras de aluvião até esbarrar em artesanato lírico das lavadeiras do Vale do Jequitinhonha. Ao dialogar com as vertentes do interior do país litorâneo, pode-se até dizer, podes crer que sem se considerar um sacrilégio artístico, que o garimpeiro das canções de trabalho dos confins das Minas Gerais se aproximou mais de Villa-Lobos do que de Antônio Carlos Jobim e dos tropicalistas baianos Caetano Veloso e Gilberto Gil. Sobre o embrionário cego cantador renascentista de Calix bento e Sentinela, a inigualável gaúcha Elis Regina sintetizou-te com maestria ao dizer que, se Deus humanamente pouco altivo se pronunciasse, decerto seria por sua celestial voz de arcanjo negro. Aliás, entre a mitologia e o homem, à voz do Criador suprimiu-se uma réstia de alfabeto que se refaz pelas letras l e n – Mito / Milton, de modo a traduzir-se, biblicamente, por labirínticos becos e vielas de Diamantina, a Aleijar-se de um assimétrico vocábulo posto em dicção da Santa Teresa do Clube da Esquina, por Wagner Tiso, Marcio e Lô Borges, Beto Guedes, Toninho Horta ou Fernando Brant.
Por sua escultura humana talhada em pedra-sabão por sobre o chão pé de moleque de Sabará, São João del-Rei, Congonhas ou Tiradentes, deu-se então com o Nascimento do Milton a reinvenção de Minas Gerais, como se o menino negro se refugiasse por Áfricas menores até aportar em estábulo ou farol em alto-mar do sertão. Ao ressoar das harpas celestes, arrebatadores trompetes divinos e cítaras angelicais à mão direita dos súditos Reis Magos da folia mineira, a lidar com o mais afinado instrumento a ser aventado pelo Criador, a tua voz de sabiá-pátria pousada em buriti-gerais. És Milton Nascimento, sobretudo, quando insurges no horizonte, alferes inconfidente sem indumentária ou mosquete, em claridade por um vozear ou alarido de relâmpago, a avizinhar-se ao edênico espaço terrestre das múltiplas travessias que, por igarapés das palmas das mãos ciganas, impavidamente soberanas desaguam, em disfarces mambembes, pela voz do Rio Chico, qual água doce que brota e jorra aos pés-curupiras de um incontestável ídolo eterno.
Tu, São Francisco impalpável, Milton, afluente dos acordes de uma existência primordial, pois que és o espetáculo do nascimento de uma aurora, que se achega ao pôr do sol pelo prelúdio de um recital silencioso do Cuitelinho, em homenagem à flor da criação, por sobre a qual nos debruçamos por arroubos efêmeros de humanidade. Enfim, por sobre a inebriável ilusão da presença que, miticamente, se afigura por sublimes traços de glória em tão humilde palco-manjedoura, sem perspectivas de salvação ou quimera, reunimo-nos a declamar, por pão, vinho e hóstias, a oração menos óbvia proferida, em púlpito, bailes e feiras, por magnífico gorjeio humano, em cor, em sombra, em luz.
*Wander Lourenço de Oliveira, doutor em letras pela UFF, é escritor e professor universitário. Seus livros mais recentes são ‘O enigma Diadorim’ (Nitpress) e ‘Antologia teatral’ (Ed. Macabéa).
Fonte: Geledes
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