A atriz fala sobre racismo no “horário nobre”, as manifestações de junho, o desafio de fazer teatro e TV, Bolsa Família e necessidade de mais políticas culturais.
Ela está radiante. Em nada parece ter sido atingida pela polêmica de que a Fifa a teria rejeitado, ao lado de Lázaro Ramos, como apresentadores do sorteio da Copa. “Sinceramente, acho que a especulação é muito maior do que a situação. Até porque, não recebi convite oficial.”
A felicidade de Camila Pitanga não é à toa. Coincidência ou não, dias depois de surgir o debate sobre um suposto racismo da entidade máxima do futebol, a 41ª edição do Emmy Internacional, conhecido como Oscar da TV, consagrou Lado a Lado – protagonizada por ela e Marjorie Estiano – como melhor telenovela.
A obra de João Ximenes Braga e Claudia Lage conta a história da amizade de duas mulheres de diferentes classes sociais, no início do século 20: uma, filha de baronesa; a outra, jovem filha de um ex-escravo. “Fala de um momento histórico muito importante, da afirmação da cultura africana, de o negro não se colocando como vítima da sociedade, mas, sim, como protagonista, como alguém que tem um pensamento crítico e que questiona o que está vivendo”, diz a atriz, que está em cartaz até dia 15 no Centro Cultural São Paulo com O Duelo. A peça, adaptação de uma novela do russo Anton Chekhov, “traz reflexões sobre a sociedade atual, como a questão da intolerância”, conta. “O que leva as pessoas a não se ouvirem? O que faz as pessoas não respeitarem diferenças?” E mais: “Nem todo mundo aceita a liberdade do outro. Estamos vivendo um momento em que não sabemos para onde a liberdade vai. É só olhar para as manifestações, em que pessoas foram presas e agredidas”. A seguir, os melhores momentos da conversa com a atriz.
Qual o peso de ganhar um Emmy neste momento?
Vou repetir o que o Vinícius Coimbra (diretor da trama) tem dito. A gente fez essa novela preocupado em falar para o Brasil e contar a nossa história. E será ótimo se o Emmy puder despertar o interesse de outros países para compreender a nossa cultura no seu paradoxo, no que tem de bom, no que tem de ruim. Fala de um momento histórico muito importante, da afirmação da cultura africana, de o negro não se colocando como vítima da sociedade, mas, sim, como protagonista, alguém que tem um pensamento crítico e que questiona o que está vivendo. E a novela também trouxe autoestima para nós, negros – que nos vimos ali de um jeito bacana, bonito, otimista e crítico também. Se já tinha sido muito gratificante participar, poder comunicar isso para o nosso País, poder ouvir professores e jovens interessados pela história é ainda mais gratificante.
- O Duelo? Traz quais reflexões sobre a sociedade?
Uma delas é a questão da intolerância. O que leva as pessoas a não se ouvirem? O que faz as pessoas não respeitarem a diferença? No espetáculo, o cientista Von Koren, vivido pelo Pascoal da Conceição, é um darwinista social, que acredita que qualquer pessoa que não esteja dentro de uma conduta alinhada às ideias dele não serve. Alguém que não serve e que deve ser eliminado – isso é terrível! É um pré-nazismo. Os nazistas achavam isso, que os judeus deveriam ser exterminados. Que ideia mais absurda alguém acreditar que uma pessoa que não compartilha de suas ideias deva ser eliminado!
E a sua personagem?
A Nadyezhda traz outro aspecto importante do enredo da peça, que é a questão da mulher. Como é ser mulher? Que é uma questão que permanece lá, mas que está muito presente em nossos dias. Assim como acontece no espetáculo, existem muitas pessoas que questionam o comportamento e a possibilidade de existir ou não uma mulher como a Nadyezhda, que é uma mulher livre. É uma mulher que compartilhou do projeto de fugir com seu amante e está ali aceitando o fracasso desse relacionamento. O que ela faz com isso? Coleciona amantes, compra sem parar. É uma espécie de madame Bovary. E, diferentemente dos outros personagens que têm teses, que desenvolvem e elaboram ideias, ela está no campo da ação.
Como assim?
Em um workshop em que trabalhávamos os personagens, cheguei à conclusão de que a Leila Diniz não foi uma mulher que pensou e elaborou um manifesto de como era ser mulher em sua época, mas representou muito. Principalmente no sentido da liberdade, do respeito a seu próprio corpo e a seus desejos. A Nadyezhda não é tão sofisticada como a Leila, mas posso dizer que ela é uma pré-Leila Diniz. Quer exercer sua liberdade. E ainda existem homens que não aceitam a liberdade e a espontaneidade de uma mulher. Nem todo mundo aceita a liberdade do outro. E é uma questão de hoje. Estamos vivendo um momento em que não sabemos para onde a liberdade vai. É só olhar para as manifestações, em que pessoas foram presas e agredidas.
No espetáculo, há cenas que dão a impressão de que os personagens estão falando sozinhos, que ninguém se escuta.
É isso e também porque a escuta é a próprio espectador. Aí estamos novamente falando de um tema atual. Hoje, temos a falsa impressão, por meio das redes sociais, de que está todo mundo em contato, em comunicação. Mas a questão é: que contato é esse? Que comunicação é essa? O teatro lida com essa esfera do humano, na qual a reflexão e o contato são muito intensos – e isso tem muito a ver com a trajetória da Mundana Companhia de Teatro, que verticaliza esse desejo de comunicar, de abrir reflexões, saindo da superfície que a gente lida tanto no dia a dia.
A sua escuta e o seu olhar para com o outro mudaram por causa do espetáculo?
O teatro é transformador. Estamos o tempo inteiro em busca de uma nova pergunta, de uma nova resposta, de uma nova maneira de entrar. Por mais que eu tenha uma partitura a seguir, tenho de me entregar ao jogo. Quando estamos sempre em busca de uma qualidade, de um requinte – e isso te dá prazer –, sem nenhuma dúvida que é algo transformador. Agora, também me conheço mais. É como se estivesse estudando como é estar no mundo, como reagir diante de uma situação de crise. O que o personagem vive, estou vivendo, estou pensando – o que me agrega um novo pensamento. Ou, pelo menos, uma visão mais ampla do mundo.
É um desafio ser, ao mesmo tempo, atriz da Globo e fazer um teatro mais reflexivo?
Essa sou eu. Sou uma pessoa conciliadora e gosto de missões difíceis e de me desafiar. Já falei disso com a minha terapeuta: não me facilito. Poder transitar entre vários universos é a riqueza. Eu posso, sim, estar lidando com o mainstream, trabalhando na Rede Globo, fazendo bons trabalhos, tendo parcerias profícuas e sinceras lá e também no teatro. E com relações de trabalho e universos diferentes.
A preparação para a peça foi no sertão do Ceará. Por quê?
Foi fruto da cabeça incrível do Aury Porto, que é o grande mentor desse projeto. Ele é do Ceará e entendeu que a peça oferecia pontos de proximidades e diferenças entre o Cáucaso (onde a história do espetáculo se desenvolve) e o sertão cearense. Assim como na peça todos os personagens são desterrados, são pessoas que não são daquela terra, seríamos nós os estrangeiros no Ceará. E também tem a ver com um desejo meu de conhecer o Brasil. Quando fiz o filme do Beto Brant (Eu Receberia as Piores Notícias dos seus Lindos Lábios), pode-se dizer que o processo foi, de certa maneira, parecido.
Em quais aspectos?
Fomos para a Amazônia muito tempo antes, ficamos lá, conhecemos as questões daquele lugar, quais eram os artistas de lá. Se não for assim, qual é o sentido? Esse processo é muito mais bacana e enriquece a história. Se fôssemos para lá simplesmente contando os dias para fazer a filmagem e tchau, iríamos ficar só entre a gente mesmo, não alimentaríamos em nada o nosso repertório de informações e experiências. Ficaria tudo mundo estreito.
Então, foi fundamental para O Duelo a experiência no Ceará?
Claro. Até porque não ficamos no litoral do Ceará, em um hotel cinco estrelas – mas em casas de famílias no sertão. Ficamos, de fato, envolvidos com o dia a dia daquela comunidade. E em toda cidade pela qual a gente passava, oferecíamos oficinas de iniciação artística. Seja de música, de teatro, de dança. Para você ter uma ideia, em Arneiroz, a banda da cidade estava desativada. Os instrumentos estavam guardados. Conseguimos que os jovens, que já tocavam, reativassem a banda. Não é que a gente ensinou tudo, já tinha um movimento artístico ali. O bacana era que a gente podia trocar ideias. E, com o advento das manifestações em junho, período em que estávamos lá, também estávamos nos manifestando. Éramos porta-vozes do que estava acontecendo no Rio, em São Paulo, Belo Horizonte. Trocávamos ideias a respeito disso e também tentávamos compreender quais os problemas daquela região. Quando falo do meu desejo de conhecer o Brasil, é disso que estou falando: de estar nos lugares sem filtro, conhecer no corpo a corpo, na troca. A gente queria estar ali, conhecer, de fato, as demandas daquela terra. E não como um grupo que quer catequizar e mostrar o que sabe.
Nesse processo, você, que é uma pessoa bastante politizada, viu o caminho de mudanças para o País?
Eu estava muito calcada na imagem, que ainda é forte, do sertão como uma terra precária e sem perspectivas. Fui lá e acho, sinceramente, que, com o advento do Bolsa Família, a dignidade está ali. Eu vi. Ninguém me disse. Não vi miséria e andei por lá. Passamos por cidades muito pequenas e, durante os deslocamentos de uma cidade para outra, não vi miséria. Podem questionar e discutir muitos aspectos da política atual – e eu sou também crítica. Mas houve uma mudança nesses últimos dez anos. Ouvi depoimentos de pessoas que viveram o antes e o depois. E há uma grande diferença. As pessoas têm autoestima e estão tendo uma qualidade de vida que não tinham antes. Eu vi.
Como produtora do espetáculo, você acha que as leis de incentivo, como a Rouanet, são suficientes?
Para a gente foi fundamental o apoio da Caixa Econômica Federal – até porque os ingressos são vendidos a preços populares. Desde o primeiro momento, a Caixa acreditou no projeto. E justamente pela característica da descentralização do conhecimento, da troca de experiências e da itinerância. O instrumento para que isso acontecesse foi a Lei Rouanet, que tem um papel muito importante ainda. Acredito ser preciso abrir outros mecanismos de fomento cultural. Não pode ser tudo calcado na Lei Rouanet. As deformações surgem porque ela é a única guardiã. Existem pessoas que não fazem um projeto artístico, apenas projetos para ganhar o incentivo da lei. Esse tipo de distorção é muito pernicioso para a cultura brasileira.
Fonte: Estadão/Geledes
Camila Pitanga (Foto: Iara Morselli/Estadão)
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