terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Poesia africana




YOLANDA MARAZZO
Yolanda Marazzo Lopes da Silva, poeta e escritora de língua portuguesa, nasceu em São Vicente, Cabo Verde, África, em 1926. Deixou Angola em 1975 na sequência da descolonização e reside hoje em Lisboa. • Colaborou na Claridade, Cabo Verde.

BARCOS
"Nha terra é quel piquinino
É São Vicente é que di meu"
Nas praias
Da minha infância
Morrem barcos
Desmantelados.
Fantasmas
De pescadores
Contrabandistas
Desaparecidos
Em qualquer vaga
Nem eu sei onde.
E eu sou a mesma
Tenho dez anos
Brinco na areia
Empunho os remos...
Canto e sorrio...
A embarcação
Para o mar!
É para o mar!...
E o pobre barco
O barco triste
Cansado e frio
Não se moveu...

CONTRASTE

A minha alma trema em tuas mãos
debruçada na varanda desta tarde

Silêncio da cor em teus contornos
o adeus do mar dentro de mim

Para além do ilhéu dos pássaros da ilha
o sol morre aos poucos devagar

A minha alma treme em tuas mãos
debruçada na varanda desta tarde

Vejo os barcos ao longe na baía
as lanchas negras dos trabalhadores
a torre da capitania ao lusco-fusco

Lentamente uma a uma na cidade
vão acendendo as luzes da cidade

Na fábrica de bolacha do Matos
na padaria do Jonas depois

Só no cemitério ao lado é tudo escuro...

Branqueiam ainda as campas dos mortos
e os nomes vou ler à hora do sol
mas agora fazem medo à minha infância
Em casa dos meus vizinho perto
          nh´ugénia de Sena e nhã Nê Grande
         acenderam os candeeiros de petróleo
(Cambambe, 1969)

DERROCADA

A asa de um morcego transparente
e no canto um olho descaído
de pestanas longas espreitando
o ácido viscoso da loucura
escorrendo pelos telhados do mundo

Viajante incansável do pasmo
no silêncio das órbitas vagabundas
dos mares-mortos delírio-espasmo
do cansaço mole das brisas vazias
que do nada se afirmam nas florestas
do ódio de gigantes e anões liliputianos

Blocos monolíticos tristes quedos
imagens-desespero cancerosos
miasmas-visco cobras moribundas
agonizando em convulsões de magma
lanças setas envenenadas dirigidas
ao coração das virgens e crianças

Sombra parda pálida acutilante
teu vulto de insônia transparente
bóia nas trevas flutuantes
da noite dos espiões pelas estradas
das feras que matam as ovelhas
e apunhalam pastores no caminho

Sombra feroz invernal medonha
destroços e cadáveres pútridos
sugando o seio das madonas
e acalentando monstros nas cavernas
pelas horas taciturnas do medo dos teus passos.
(Luanda, 1977)

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