RIO - Quatro anos atrás, a atriz Isabel Fillardis recebeu no celular uma imagem enviada pelo marido, o engenheiro Júlio Cesar, que reproduzia o desenho em preto e branco de Joaquina Maria da Conceição da Lapa, a Lapinha, pendurado na parede de um bar na Avenida Mem de Sá. Impressionada pela semelhança entre ela mesma e a moça do retrato, Isabel partiu para o Google à procura de informações sobre a mulata. Na Wikipédia, a página destinada à Lapinha estava repleta de pontos de interrogação em relação a datas, mas informava o suficiente para Isabel se encantar pela personagem histórica: “Foi a primeira cantora lírica do Brasil a ganhar destaque internacional e uma das primeiras mulheres a receber autorização para participar de espetáculos públicos em Lisboa.”
De lá para cá, Isabel escarafunchou os arquivos da Biblioteca Nacional, arquitetou o projeto de um espetáculo musical e convidou Lázaro Ramos para dirigi-lo. A estreia será no segundo semestre.
— Quero apresentar à sociedade atual essa maravilhosa personagem, cuja história, por algum motivo, ficou guardada no século XVIII — diz Isabel.
O movimento de resgate da memória de Lapinha não se restringe ao teatro. Coincidentemente, a cantora que encantou D. João VI virou enredo de escola de samba este ano. A Inocentes de Belford Roxo, do Grupo de Acesso, vai desfilar “O triunfo da América — O canto lírico de Joaquina Lapinha”, desenvolvido pelo carnavalesco Wagner Gonçalves, na Marquês de Sapucaí. Lapinha seria o enredo da Beija-Flor. Mas como a agremiação de Nilópolis optou por fazer um desfile em homenagem a José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, Laíla — que acumula os cargos de diretor de harmonia da Beija-Flor e diretor de carnaval da Inocentes — sugeriu o tema à agremiação de Belford Roxo.
— Como 90% dos brasileiros, eu nunca tinha ouvido falar em Lapinha — conta Wagner Gonçalves, que começou a buscar artigos acadêmicos, encontrou o livro do músico e pesquisador Sérgio Bittencourt-Sampaio, “Negras Líricas — Duas intérpretes negras brasileiras na música de concerto” (7Letras) e virou expert no assunto. — Descobri uma história linda: essa mulher quebrou um série de tabus no tempo em que viveu, entre o finalzinho do século XVIII e o início do século XIX.
No meio das pesquisas, o carnavalesco acabou esbarrando com Isabel Fillardis. Conversa vai, conversa vem, a atriz, que deu à luz ao terceiro filho há um mês, vai encarnar Lapinha no desfile da Inocentes.
— Será um esquenta para o musical — imagina Isabel, que semana passada visitou pela primeira vez o barracão da escola, na Cidade do Samba, e falou sobre a sua admiração pela personagem. — Além do talento, Lapinha tinha um enorme carisma. Conquistou a realeza e despertou muitas paixões, registradas em poemas. E ainda teve trânsito livre entre Brasil e Portugal, segundo passaportes da época.
A importância histórica de Lapinha, na opinião de Sérgio Bittencourt-Sampaio, ultrapassa o âmbito musical:
— Nenhuma atriz brasileira conseguira tais triunfos, especialmente naquela época, no exterior. Portanto, a Lapinha tornou-se um exemplo de mulher independente, que ganhava a vida com a arte. Apesar de ter duas condições que, em teoria, dificultariam sua carreira, ou seja, ser mulher e mulata, ela conseguiu mostrar aos países o valor de seu talento. Foi a primeira atriz e cantora brasileira a colher triunfos fora das nossas fronteiras.
O desfile da Inocentes de Belford Roxo vai mostrar, de forma lúdica, a trajetória de Joaquina Lapinha. Quatro carros alegóricos vão representar quatro palcos da cantora e atriz que, segundo Sérgio Bittencourt-Sampaio, teria nascido em Minas Gerais e, após o declínio da mineração, mudado para o Rio de Janeiro, onde começou a atuar na década de 80 do século XVIII. O primeiro carro representará a origem e a herança africana; o segundo, Ouro Preto e a origem musical; o terceiro, o Teatro Nacional de São Carlos, de Lisboa; e o quarto, a homenagem do carnaval carioca a ela, com negros tocando violinos em ritmo de samba.
— O enredo tem uma pegada política que não há como negar. Sou um carnavalesco negro contando a história de uma cantora lírica negra. As histórias se condensam — comenta o carnavalesco.
Wagner lembra que Lapinha sofreu imenso preconceito racial. Ela tinha que cobrir o rosto com pó de arroz antes de subir aos palcos, como mostra o relato da época feito pelo viajante sueco Carl Israel Ruders, reproduzido em livros: “Joaquina Lapinha é mulata e filha de uma mulata, por cujo motivo tem a pele bastante escura. Este inconveniente, porém, remedia-se com cosméticos. Fora disso, tem uma figura imponente, boa voz e muito sentimento dramático.”
Quando foi buscar um rosto para usar como base para esculturas de Lapinha, o carnavalesco encontrou uma única referência: a pintura que estava pendurada numa parede da Lapa (o botequim fechou há dois anos) e cativou Isabel Fillardis. Mas esse “retrato”, é bom ressaltar, é fruto da imaginação do pintor e artista gráfico Mello Menezes. Até hoje, nenhuma imagem fiel da cantora foi encontrada. Há apenas cartazes e folhetos que registram as suas apresentações.
— Há referências explícitas quanto à sua presença em terras lusitanas. Isso comprova sua atuação em concertos em Lisboa, no Real Teatro de São Carlos, incluindo sua contratação por um período de seis meses no início do século XIX. No Rio, por sua vez, há referências de sua atuação em um elenco de amadores num teatro localizado na Rua do Passeio no final do século XVIII, e destaca-se a sua atuação, após seu retorno de Portugal em 1805, na Ópera Nova, após a chegada da corte portuguesa — conta a mestre em Música Alexandra van Leeuwen, criadora do verbete sobre Lapinha no “Dicionário Biográfico Caravelas”, que está finalizando tese de doutorado sobre o tema na Unicamp.
Alexandra, que realizou pesquisas em instituições do Brasil e de Portugal, explica que é difícil reconstruir a história de Lapinha uma vez que as fontes documentais são escassas:
— As fontes biográficas não permitem identificar uma história de vida com início, meio e fim.
Sérgio Bittencourt-Sampaio conta que, na verdade, a lembrança de Lapinha e a admiração por ela persistiu até quase o final do século XIX:
— Nos livros sobre música brasileira, ela raramente é citada. Vários fatores contribuíram para isso. Em primeiro lugar, sua carreira terminou por volta de 1813, quando ainda não havia uma crítica musical estruturada no Brasil. Em segundo, com o desenvolvimento da ópera no tempo de D. Pedro II, as cantoras de sucesso vinham da Europa, e dificilmente uma atriz afrodescendente chegaria aos palcos em posição de destaque ou mesmo de menor importância.
Ninguém sabe em que ano Joaquina Lapinha nasceu ou em que ano ela morreu. Mas 2014 tem tudo para ser o ano de seu renascimento.
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