segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Resenha - Histórias da Preta - Heloisa Pires


Na obra Histórias da Preta, de Heloisa Pires Lima, a autora apresenta uma abordagem histórica de cultura africana, passando pela definição de etnia e racismo, sempre trabalhando com uma visão do que é ser diferente. Essa é uma obra um tanto quanto complexa. A preta, vemos pela capa do livro, é uma jovem; porém, no decorrer da narrativa, dado o conhecimento e as reflexões que ela apresenta, já parece uma mulher adulta experiente: “Certa vez, trabalhei com os índios pataxós, na Bahia...” (p. 55).

A estrutura da obra é diferente: temos, no início, a Preta se apresentando (fase de menina):
Cresci uma menina igual a todas as meninas e diferente de todas as outras. Desse jeito, sou eu com minha história, nesta história com todos os tamanhos que couberem neste livro. Eu sou a preta. Era minha madrinha, a tia Carula [ ... ] que me chamava assim (p. 9).
O livro é dividido em Apresentação, África, O roubo do tesouro, São direitos ou são tortos?, Historietas da Preta, Histórias do candomblé, Diferente de ser igual. Outro aspecto interessante na estrutura é que a preta é a narradora-personagem principal. A voz na história é dela, e notamos que ela tem muitos traços da autora no decorrer da narração.
Tentaremos, pelo menos, apresentar a idéia principal da obra. Na Apresentação, ela discute sobre o duplo sentido da designação. Preta:
[...] tia Carula ficou principalmente na minha lembrança de certos dias tristes em que ela chegava com sua sacolinha de carinhos. E só ela sabia me chamar de Preta desse jeito que ficou tão doce. Olha que engraçado: quando os outros diziam que eu era preta eu achava estranho (p. 12).




Notamos a relação afetuosa dela com a tia, o carinho, o ambiente aconchegante.
Preta mostra seus questionamentos e seu processo de descoberta e de se assumir como negra: “— Eu não sou preta, eu sou marrom. Cor de doce de leite, como a canela, como o chocolate, como o brigadeiro. Cor de telha. Cor de terra [...]. Eu fui aos poucos descobrindo que eu era Preta marrom, uma menina negra”.
Não é imediatamente que ela se denominará como negra, mas aos poucos vai se percebendo e sendo percebida como tal.
É fundamental aqui o processo, pois muitos negros passaram por ele: “Ser negra é como me percebem? Ou como eu me percebo? Ou como vejo e sinto me perceberem? [...] Como é, afinal, ser uma pessoa negra? Eu respondo quando responderem como é que é ser uma pessoa que não é negra?” (p. 12).
Durante a Apresentação, encontramos reflexões curiosas, inquietantes sobre essa questão: “— Vó, quem inventou a cor das pessoas? [...] Ela disse: — Eu só respondo se tu me disser quem inventou o nome da cor das pessoas” (p. 12).
Ou quando ela vai comparar o termo afro com “etiqueta para todos ou tudo o que é parecido com algo ou alguém da África. Euro é a etiqueta para semelhanças européias” (p. 13).
A origem africana é assunto que percorre toda a obra, bem como a origem mestiça: “[...] Outro dia eu conversei com um amigo loiro cuja mãe sempre conta com orgulho que sua avó era negra [...] Eu, negra descendente de alemães, e ele, loiro descendente de crioulos. Ninguém acredita!”. Chama-nos a atenção essa inversão positiva da mãe do amigo, que conta com orgulho a origem negra.
Mas origem africana está na cara. E também no coração. Ser africano é diferente de ser italiano ou francês [...] onde o bicho homem virou gente foi na África [...]. Mas, ainda que todo mundo seja africano na origem, nem todo o mundo é visivelmente negro hoje em dia. É um quebra-cabeça essa história (p. 13).
A partir daí, ela vai colar pedaços da história para tentar montar esse quebra-cabeça.
Comentemos, agora, a primeira parte da história: a África é negra ou muito colorida? A preta é uma contadora de histórias, haja vista o título da obra. Porém, de ouvidora de histórias, ela passou a ser leitora e, por último, escritora: “Fui crescendo com Lia, que me ensinou a escutar e a sonhar e às vezes a ter pesadelos com essas histórias. Às vezes líamos juntas. Depois comecei a ler de tudo, até que virei uma Lia. E Lia agora escreve livros” (p. 16).
Notamos a maneira criativa e envolvente com que a narradora tece suas idéias, sempre procurando brincar, jogar com os sentidos das palavras lia (do verbo ler) e Lia, nome próprio. Esse caráter lúdico-metafórico perpassa quase toda a obra, por exemplo: “Depois de mil e uma noites e dias de histórias sobre a África, entendi que por muito tempo os livros diminuíram alguns povos” ou “A África tem muitas etnias, isto é, muitos jeitos diferentes de ser num mundo aparentemente igual”.
Tranqüilamente, a autora nos coloca em contato com a África, com definições de etnia, cultura, por meio de uma linguagem instigante, provocativa, reflexiva e, muitas vezes, com ludicidade. Quando ela conta um dos mitos da criação do mundo pelos africanos, notamos um pouco isso:
Sabe como o mundo foi criado pelos africanos? Ou como os africanos foram criados pelo mundo? Ou como a criação criou o mundo africano? Ou como muitos africanos criaram as histórias da criação? (p. 18). Essas narrativas cheias de poesia são conhecimentos que contam sobre a criação do mundo: sabedoria sob o céu de estrelas africanas (p. 22).


Ela apresenta a dimensão sagrada da palavra para o povo africano e o griot oudiélis (quer dizer sangue, e a circulação do sangue é a própria vida, a força vital), contador de histórias, poetas, músicos: “[...] é através da fala que o mundo continua a existir no presente” (p. 23).




Na segunda parte, a Preta nos fala da captura de negros africanos, das etnias que vieram para algumas regiões do país. Percebemos verdadeira preocupação em mostrar outro lado da história não contada nas escolas, ou seja, uma versão diferente da história oficial, pois a Preta nos fala sobre o comércio transaárico na África, sobre o tráfico de gente: “Tinha o mercado de gente, o mercado de marfim, o mercado de ouro, e esses mercados dividiam e uniam etnias” (p. 39), até chegar ao mercado transatlântico e às suas conseqüências: “Até de tristeza eles morriam — uma tristeza chamada banzo, que era a falta que sentiam de sua terra, de sua casa” (p. 41). No livro Luana, também aparece esse termo.
Por último, ela mostra dados sobre quando, quantos, para onde e de onde vieram os escravizados, quais eram as etnias e os principais traficantes. Notamos que essa preocupação de apresentar um relato fiel da realidade histórica é imprescindível para um resgate da nossa história; porém, ao fazê-lo, perde-se um pouco o teor literário da obra, pois parece que estamos diante de um livro de história, e não de ficção, embora entendamos a preocupação em explicar tudo à criança.
Será que essa é uma característica dessa nova tendência de escritores (negros ou não) ou até mesmo uma necessidade da literatura infanto-juvenil com recorte étnico-racial, visando a uma busca e/ou ao resgate da nossa identidade? Ainda não podemos afirmar isso, mas há outros livros, não analisados aqui, que demonstram essa preocupação também.
No capítulo São direitos ou são tortos?, encontramos Estevão, um garoto negro, aluno da Academia Imperial de Belas-Artes, filho de escravos:
Mas uma confusão que costuma acontecer é imaginar que todas as pessoas negras eram escravas [...] algumas puderam pôr em prática as estratégias de libertação e conseguiram libertar a si mesmas e tornar livres seus filhos e netos (p. 46).
Enquanto ele desfila pelas ruas do Rio de Janeiro, possivelmente, Preta nos conta o sonho dele: ter sucesso como o artista negro José Maurício N. Garcia: “Uma pausa do órgão quebrou seu sonho. Sabia que teria que brigar muito para conseguir ser importante. Tinha mesmo era que libertar todo mundo primeiro” (p. 47). Ele também quer ser capoeirista e vê a capoeira como uma luta que parece uma dança. Além de Estevão, ela cita alguns negros brasileiros que se destacaram.
Em Historietas da Preta, ela novamente conta várias histórias, buscando enfatizar que há outras maneiras de olhar algo ou alguém diferente, mostra a invisibilidade do negro ou a imagem dele sempre dominado, associado a tudo que é ruim: “A coisa está preta” (p. 54), sofrendo racismo. No dicionário, ela vê a definição dada ao negro: “Assim eu não vou querer ser nem negra nem preta”(p. 54). Ela vai trabalhando com os significados das palavras:
O sentido que nós damos às palavras indica o modo como vemos o mundo, traduz o que achamos das coisas [...]. Sombra é bom quando tem muita luz, e luz é bom quando está muito escuro. O petróleo é negro e não é sujo, o carvão é preto e faz fumaça branca, e eu pensei em tantos opostos que se equilibram que... deu um branco na minha cabeça! (p. 54)
Nas Histórias do candomblé, Preta nos conta sua experiência em uma festa de caboclo: “A festa foi uma flecha que me atirou para dentro de um mundo desconhecido” (p. 60), pois ela havia estudado em escola de freiras: “Quando se é criado numa religião, aprende-se a evitar as outras. Das religiões de origem africana, sempre me chegavam informações muito preconceituosas” (p. 60). A Preta nos fala do candomblé, dos iorubas, dos orixás: Oxum, Oxumaré, Xangô, Oxossi, Obaluaiê, Iansã e outros.
Em Diferente de ser igual, ela retoma o que é ser diferente, ser igual, sempre procurando mostrar o lado enriquecedor da diferença e a igualdade de direitos: “Quem são os mais diferentes? Depende de como eu sou. Mas e se eu for muitos? Então vou ser parecida com muitos [...]. Somos iguais no direito à vida” (pp. 68–69).
As ilustrações desse livro são belíssimas. Na capa, temos a Preta lineada com detalhes; notam-se os traços africanos, os adornos, a maquiagem e as tranças, assim como em Luana. As cores utilizadas são atraentes, fortes e significativas, pois lembram e mostram o colorido das cores africanas (pp. 26, 54 e 57). Em todas as páginas, há algum desenho, muitos deles de algumas etnias africanas; objetos de diferentes etnias também aparecem em destaque (pp.23–24), assim como animais africanos típicos, como camelo, girafa, jacaré, veado e outros (pp. 1, 2, 6, 7, 17, 26, 27, 34, 35 e 36).
Há ilustrações que parecem verdadeiras poesias ou quadros, que encantam, atraem, como a imagem de um pássaro numa página meio rosada com uma lua com cara de gente (p. 14) ou da amiga Lia montada em um camelo, ilustração que utiliza duas páginas com tons diferentes, parecendo a paisagem de um quadro (pp. 31–32).
Nas ilustrações da Preta ainda menina, notamos que, em uma, ela está mais escura e, em outra, mais clara, com traços diferentes, acredito que com cabelo diferente também. A constante referência à África é notória e muito positiva; por exemplo: na página 12, temos um desenho parecido com um mapa colorido, escrito África, com os africanos representados com vestimentas tradicionais, adornos (pp. 16–18). Algumas são mais nítidas do que as outras com relação aos traços faciais, se compararmos às páginas 16, 30 e 37.
Na quinta parte, temos ilustrações que retratam o candomblé, os orixás, as iniciadas (pp. 60–65).
O Sol, representando o dia, com traços negros (pp. 6, 15), em primeiro lugar, e a Lua (noite), em segundo lugar, são os mais desenhados. Além das ilustrações, o material, o papel utilizado para a impressão do livro é de extrema qualidade, gostoso de manusear, tatear, contribuindo para a estética do livro. Há ilustrações grandes, chamativas e outras com teor (preocupação) mais instrutivo (pp. 24, 25 e 43).
Fonte: CAVALLEIRO, Eliane. Racismo e anti-racismo na educação: repensando nossa escola. São Paulo: Summus,2001. pp. 206-212.

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