Luana Tolentino*
(Imagem: Manuela e Flor, Meninas do Josué)
Para quem acredita em destino, o meu se mostrou cedo demais. Aos dez anos alfabetizei a pequena Bárbara, que na época tinha cinco. É bem verdade que tentei fugir, trapacear o que a vida havia reservado para mim. Até prestar o vestibular, jamais admiti que me tornaria professora. Por outro lado, nunca consegui pensar em qualquer outra profissão. O resultado não poderia ter sido outro: há cinco anos dou aulas de História para turmas do ensino fundamental e médio.
Acho que tenho mais habilidade com os maiores. Lidar com os conflitos típicos de alunos e alunas na faixa etária entre 11 e 13 anos, demanda muita energia. Em 2012, depois de ministrar aulas somente para estudantes do ensino médio, assumi algumas turmas da 6ª série, já no último bimestre. Durante esse período, levei para sala de aula um projeto sobre Gênero e Raça, fruto do meu desejo “pela criação de um mundo de conhecimentos recíprocos”, além de uma tentativa de implementar a lei 10.639, que desde 2003, tornou obrigatório o ensino das Histórias e Culturas africanas e afro-brasileiras em sala de aula.
Nesses dois meses, trabalhei principalmente a questão da construção da identidade racial dos garotos e garotas, a partir de suas vivências, de algumas representações da população negra na mídia, na literatura e na música. Embora o tempo para a realização das atividades tenha sido curto, posso dizer que o trabalho trouxe bons frutos.
O entusiasmo das turmas era evidente. O envolvimento, a participação e o compromisso também. Foi um período de descobertas e aprendizados, tanto para eles, quanto para mim. Dessa experiência, guardo as melhores lembranças. Porém, nada me marcou tanto quanto um diálogo entre as alunas Tamires e Esther. A primeira, que tem a pele branca, afirmou: “Eu queria ser negra só para ser afro-brasileira igual a minha professora!”. Esther, que é negra, com altivez, respondeu: “Ainda bem que eu já sou”!
Costumo dizer que o riso seguido do choro é a maior expressão de emoção que uma pessoa pode ter. E foi exatamente isso que eu senti. Achei graça da sinceridade e da pureza presentes nas palavras da Tamires. Por outro lado, não conseguia conter a lágrimas ao pensar na resposta afirmativa da Esther, carregada de orgulho pelo seu pertencimento racial. Ao mesmo tempo, chorava ao lembrar de meu tempo de escola, dos meus amigos negros, e de todas as vezes que alguns professores tentaram desqualificar a minha pessoa e o meu trabalho, acusando-o de desnecessário, e sem qualquer tipo de fundamento.
Aos doze anos, idade das duas alunas, a última coisa que eu queria na vida era ser negra. Não tenho o menor problema em dizer isso. O percurso que percorri para afirmar a minha negritude, com o mesmo ensejo que a Esther, foi marcado por muito sofrimento. E antes que alguém me importune, dizendo que “nós negros temos preconceitos de nós mesmos”, explico: histórica e cotidianamente, somos expostos a todo tipo de humilhações. O desprezo e a vergonha que sentimos dos nossos corpos enquanto negros são frutos da violência racista a que somos submetidos desde a tenra idade.
A escola, enquanto componente de uma sociedade racista como a brasileira, sobremaneira (re)produz e legitima as práticas discriminatórias, tornando a trajetória de alunos e alunas negras um tanto traumática. No espaço escolar, o preconceito racial se manifesta de diferentes modos: pelo silenciamento ou ocultação acerca das assimetrias existentes nas relações raciais; ao negar à população negra a condição de sujeitos históricos, vivos e participativos na formação do Brasil; e sendo conivente e omissa com atitudes que desqualificam e menosprezam os estudantes afrodescendentes. Dificilmente, uma criança negra durante seu percurso escolar, nunca foi chamada de “macaca”, “beiçuda”, “negra do cabelo duro”, e tantas outras formas de xingamento, o que contribui preponderantemente para que haja um sentimento de negação de sua identidade.
Sartre, no belíssimo ensaio Orfeu Negro, afirma que, “ministrando-o ao negro, o professor, ministra-lhe, ademais, centenas de hábitos de linguagem que consagram a prioridade do branco sobre o preto. O preto aprenderá a dizer “branco como a neve” para significar a inocência, a falar da negrura de um olhar, de uma alma de um crime”. Tamires e Esther, naquele momento, sem saber, representaram o movimento inverso. Um movimento de ressignificação e valorização das diferenças. Mais do que isso. Suas palavras soaram como um lenitivo. Trouxeram a esperança e a certeza de podemos contribuir para a desconstrução de preconceitos e estereótipos que discriminam e inferiorizam o grupo social negro.
O vinte de novembro, dia da Consciência Negra, se aproxima. Talvez, inconscientemente, tenha me lembrado dessa história para sentir-me encorajada a continuar lutando pela superação das desigualdades raciais, e para construção de um país onde “Tamires” (re)conheçam a beleza (em todos os sentidos) do povo negro. E mais, que outras “Esther”, sejam ensinadas a sentir orgulho de ser afro-brasileiras.
Fonte: http://www.pragmatismopolitico.com.br/
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