De “As Veias Abertas da América Latina”, obra histórica visceral, Galeano passou ao relato poético e breve, mas não menos essencial
Por Vanessa Martina Silva No Portal Fórum
“O mundo está feito de histórias. São as histórias que contamos, escutamos, multiplicamos, que permitem converter o passado em presente e o distante em próximo, o que está longe em algo próximo, possível e visível”. (Eduardo Galeano, 1940 – 2015).
Do microcosmo, Eduardo Galeano, que morreu nesta segunda-feira (13/04), pretendia alcançar toda a humanidade. Com os pequenos fatos cotidianos, recriar a história oficial, contada para que os pequenos, os pobres, as mulheres, os negros, os indígenas não tivessem voz. Trabalhou toda a vida para inverter a perversa ordem.
De “As Veias Abertas da América Latina”, obra histórica visceral, símbolo da esquerda latino-americana, Galeano passou ao relato poético e breve, mas não menos essenciais. Classificar suas obras nas categorias existentes é uma difícil e às vezes impossível missão já que mistura poesia, história, análise, relatos.
1. As Veias Abertas da América Latina (1971)
“Nós nos negamos a escutar as vozes que nos advertem: os sonhos do mercado mundial são os pesadelos dos países que se submetem aos seus caprichos. Continuamos aplaudindo o sequestro de bem naturais com que Deus, ou o Diabo, nos distinguiu, e assim trabalhamos para a nossa perdição e contribuímos para o extermínio da escassa natureza que nos resta”. O trecho consta no prefácio de Galeano à edição do livro As Veias Abertas da América Latina (L&PM, 2010, 397 páginas, R$44).
Publicado pela primeira vez em 1971, o autor passou a vida lamentando a atualidade da obra que pela transcendência, marcou a esquerda latino-americana e chegou a ser proibido na Argentina, Chile, Brasil e no Uruguai, durante as ditaduras militares nesses países.
Do período colonial até a contemporaneidade, passando pelas ditaduras do subcontinente, a obra questiona: “o subdesenvolvimento é uma etapa no caminho do desenvolvimento ou é consequência do desenvolvimento alheio?” e analisa a exploração econômica e a dominação política na América Latina.
A obra ganhou ainda mais notoriedade quando em 2009, o ex-presidente venezuelano Hugo Chávez o deu de presente ao mandatário norte-americano, Barack Obama, durante a 5ª Cúpula das Américas. Mas, Galeano considerou, no final da vida, a obra ultrapassada. Em declarações a jornalistas durante a 2ª Bienal do Livro de Brasília no ano passado, o autor afirmou: “eu não seria capaz de ler de novo. Cairia desmaiado. Para mim, essa prosa da esquerda tradicional é chatíssima. Meu físico não aguentaria. Seria internado no pronto-socorro”.
2. Memória do fogo (1982-1986)
Publicado em forma de trilogia, o livro, premiado pelo Ministério da Cultura do Uruguai e com o American Book Award, distinção fornecida pela Universidade de Washington, combina elementos de poesia, historia e conto. É composto pelos livros “Os Nascimentos” (1982), “As Caras e as Máscaras” (1984) e “O Século do Vento” (1986) (L&PM, 2010, 1584 páginas, R$69).
Os livros trazem poemas, transcrição de documentos, descrição dos fatos e interpretação de movimentos sociais e culturais, que compõem uma cronologia de acontecimentos, proporcionando uma visão de conjunto sobre a identidade latino-americana.
Como em “As Veias Abertas”, o livro propõe-se a ser uma revisão da história da região, desde o descobrimento até nossos dias, para enfrentar a “usurpação da memória” da história oficial. Com textos independentes que se encaixam e se articulam entre si, a obra traz um quadro completo dos últimos 500 anos. Apesar de manter a cronologia das histórias, o autor ignora a geografia para dar, assim, uma melhor ideia da unidade da história americana, para além das fronteiras fixadas “em função de interesses alheios às realidades nacionais”, como definiu.
3. Dias e Noites de Amor e Guerra (1975)
Vencedor do Prêmio Casa das Américas de 1978, “Dias e Noites de Amor e de Guerra” (L&PM, 2001, 200 páginas, R$ 19,90) é uma crônica novelada das ditaduras de Argentina e Uruguai, um relato autobiográfico, uma memória íntima, convertida em memória coletiva.
Junto ao horror dos amigos que desapareceram, Galeano traz o amor, os amigos, os filhos, a paisagem, tudo aquilo que ainda na escuridão de uma guerra suja e despiedada contra os mais fracos segue sendo motivo para viver, para defender as ideias e para alçar a voz contra os que atuavam impunemente para implantar o medo e a conseguinte paralização.
“Às vezes, sinto que a alegria é um delito de alta traição, que sou culpado do privilégio de seguir vivo e livre. Então me faz bem lembrar o que disse o cacique Huillca, no Peru, falando diante das ruínas: ‘aqui chegaram. Quebraram até as pedras. Queriam nos fazer desaparecer. Mas não conseguiram, porque estamos vivos’. E penso que Huilca tinha razão. Estar vivos: uma pequena vitória. Estar vivos, ou seja: capazes de alegria, apesar dos adeuses e os crimes”, como consta na contracapa do livro.
4. Os filhos dos dias (2012)
“Os Filhos dos Dias” (L&PM, 2012, 432 páginas, R$ 49) se inspira na sabedoria maia e traz 366 relatos que compõem a história, desde a Antiguidade até o presente. É baseado em uma versão do Gênesis que Galeano escutou em uma comunidade maia da Guatemala. “Se somos filhos dos dias, nada tem de estranho que cada dia tenha uma história para oferecer”. Assim, o livro, escrito em forma de calendário, traz episódios que ocorreram no México de 1585, no Brasil de 1808, na Alemanha de 1933 e em outras épocas e países.
A obra, que não pode ser definida em nenhum gênero por ser, ao mesmo tempo, todos (jornalismo, literatura, música e poesia), foi trabalhada ao longo de quatro anos. Teve 11 versões antes de ser publicada. “Sou um perfeccionista insuportável”, reconheceu Galeano. “É um livro que dói, mas também faz rir”, disse.
A mulher, o poder, os maias, as culturas originárias, o homem, a legalização das drogas são temas presentes. Com um olho no microscópio e outro no telescópio, Galeano forma um mosaico que permite contemplar o micromundo, de onde acredita que sai a grandeza do universo. “O prazer de encontrar essas histórias é descobrir o que não foi contado, ou que foi mentido pelas vozes do poder: essas contra vozes que o poder oculta porque não convém a eles que saibamos”.
Em entrevista ao site mexicano La Jornada, disse: “Vivemos presos em uma cultura universal que confunde a grandeza com o grandinho. Creio que a grandeza alenta, escondida, nas coisas pequeninas, as pequenas histórias da vida cotidiana que vão formando o colorido mosaico da história grande. Não é fácil escutar esses sussurros quando vivemos mal a vida convertida no espetáculo grande e gigantesco”.
5. Mulheres (1997)
“Mulheres” (L&PM, 1998, 176 páginas, R$ 18) é uma coletânea de textos publicados nos livros “Vagamundo e outros contos”, “Dias e Noites de Amor e de Guerra”, “Memória do Fogo” (trilogia), “O Livro dos Abraços” e “As Palavras Andantes”.
De forma lírica e poética, o autor traz relatos de mulheres célebres, anônimas que com sua vivência, deixaram marcas no dia a dia das pessoas com as quais conviveram e, por isso, devem ser lembradas.
O livro traz histórias de Charlotte Perkins Gilman (1860-1935), escritora norte-americana, cuja produção literária enfoca as relações entre mulher e homem e a opressão da sociedade em que viveu; da escrava Jacinta de Siqueira, “africana do Brasil, fundadora da Vila do Príncipe e das minas de ouro dos barrancos de Quatro Vinténs”; de Xica da Silva, escrava que virou rainha no século XVIII; da revolucionária Manuela Saénz, que junto a Simón Bolívar, seu amante, lutou pela independência das colônias sul-americanas; da compositora e cantora Violeta Parra, considerada a mais importante folclorista do Chile e ainda de Frida Khalo, Tina Modotti, Evita, Carmem Miranda, Isadora Duncan.
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