sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Criança aprende com os pais a ter atitudes racistas, diz escritora

Entre as árvores e bichos africanos, vivem seres fantásticos: um crocodilo terrível e violento que assusta bichos e homens, uma deusa das águas que é pescada por um ribeirinho, um macaco que vai à Lua e encontra um tambor por lá...
Histórias e mitos da África foram reunidos no novo livro da escritora Silvana Salerno, 63, "África - Contos do Rio, da Selva e da Savana". Tudo começou em 1975, quando a autora se formou em jornalismo e partiu para uma jornada por diversos países do continente, onde teve contato com a rica cultura oral.
Na obra, a literatura divide espaço com o jornalismo, principalmente na forma de um glossário no final, que explica paisagens, povos e animais que aparecem nas histórias –todas de regiões de onde vieram os africanos enviados ao Brasil como escravos.
Leia entrevista com a autora abaixo.

Fernando Nuno/Divulgação
Retrato da escritora Silvana Salerno, que lança livro com contos africanos
Retrato da escritora Silvana Salerno, que lança livro com contos africanos

Como foi sua viagem à África?
Silvana Salerno - A primeira foi em 1975. Tinha acabado de me formar em jornalismo na USP e fui só com uma passagem de ida para Dacar [capital do Senegal]. De lá, fomos para a Gâmbia e para o Marrocos, sempre participando da vida das pessoas, indo à casa delas, comendo junto.
Todos adoravam saber que éramos brasileiros. Eram os anos 1970, a seleção brasileira estava no auge. Todo mundo conhecia o Pelé.
O que foi mais marcante?
A comida. Lembro que na casa dos mais pobre, na dos mais ricos ou mesmo nos restaurantes, todos comiam com as mãos. Era muito interessante. As refeições vinham em grandes bacias coletivas, como se fossem grandes travessas. Depois, no Senegal, me impressionei com a semelhança com as comunidades indígenas do Brasil. As mulheres trabalhando no campo, os homens caçando e pescando.
Foi quando teve contato com as histórias do livro?
Com algumas, como a do tambor africano. Depois voltei mais quatro vezes. Quando decidi fazer o livro e reunir as histórias, fui a Paris. Lá visitei bibliotecas e livrarias especializadas em obras africanas, onde coletei muitos contos. Voltei ao Brasil com 35 livros na bagagem. Meu luxo sempre foi viajar. Em vez de reformar a casa ou comprar coisas, ia conhecer novos lugares.
O que as histórias do livro têm em comum?
São textos que trazem uma mensagem, mas sem serem didáticos. Eles não têm adjetivos, não são como muitos contos da literatura infantil inglesa, por exemplo, cuja principal função é fazer a criança escovar os dentes ou não ter medo do escuro. Sou totalmente contra isso.
Não é papel da literatura ensinar?
Literatura é ficção. Ela ensina sem dizer que ensina. Literatura não é livro didático. Ela sempre deixa uma mensagem, mas sem dizer. É assim com Tolstói, Machado de Assis e os grandes escritores. É assim com esses contos africanos também. Eles não são didáticos, não trazem um fundo de moral.
A África que você imaginava antes de conhecer o continente era muito diferente da que encontrou ao desembarcar no Senegal?
Foi meu aniversário de 23 anos em Dacar. Não foi um choque, até porque eu não imaginava nada. Fomos com uma mochila só, com roupas, um casaco de lã, um chinelo. A vontade era mais a de sair do Brasil por um período, porque a gente vivia em uma ditadura.
O maior choque foi ver que os povos da África negra, que vieram para o Brasil na época da escravidão, tinham quase todos se transformado em muçulmanos. Aquela cultura dos iorubás, por exemplo, era raro de encontrar. A população tinha trocado as tradições para rezar para Meca. Mas era uma época em que todas essas questões relacionadas ao terrorismo ainda não existiam.
Conhecer a cultura africana era exceção nos anos 1970? Hoje as pessoas conhecem mais sobre o continente?
Quando fizemos a primeira viagem, lemos muito sobre a África e estudamos suas culturas. Tínhamos ido para a Bahia para ver de perto algumas coisas. Hoje o conhecimento aumentou muito, está mais acessível. Mas a mesma internet que possibilitou isso entrega um conteúdo ainda muito básico. É tudo muito raso.
Mas há mais livros disponíveis sobre a África, não?
Certamente, há muito mais filmes e livros. Nos anos 1970, ainda convivíamos com a censura, com a guerra de Angola. Era difícil conhecer autores e receber notícias de lá. Hoje escritores africanos vêm a todo momento ao Brasil, há um intercâmbio maior. É só ver o Mia Couto, por exemplo, que sempre participa de eventos no país.
O mesmo raciocínio se aplica à produção de livros para crianças? A lei 10.639, que obriga o ensino de história e cultura afro-brasileira, impulsionou a publicação de livros infantis sobre esses temas?
É difícil que as escolas abram espaço para a África. O MEC [Ministério da Educação] quer que as escolas estudem o tema, mas muitas têm a grade horária cheia e não conseguem ter espaço para isso.
O que não pode acontecer é substituir o ensino da história ocidental pelo ensino da história africana, por exemplo. Uma cultura não invalida a outra. O pensamento ocidental europeu é a base do nosso pensamento. Se você subtrai isso, você entende menos sobre o mundo. A ideia é sempre somar, nunca subtrair.
Existe racismo no Brasil?
Existe, mas a gente não dá conta. Até a década de 1960, havia muitos professores e profissionais de classe média negros ou mulatos. A integração social era maior. Só que alguma coisa aconteceu, e os negros foram excluídos economica e socialmente. Eles saíram dos empregos que ocupavam, saíram até das escolas. Isso fez com que o racismo aumentasse. O negro tem raiva por ser excluído; o branco não convive com o diferente. Isso gera uma situação de conflito.
Isso é replicado na infância?
A criança é como um mata-borrão. Ela é moldada de acordo com o comportamento da casa, dos pais. A criança aprende vendo. Não adianta pedir que ela coma alimentos saudáveis, mas só comer porcaria em casa. Não adianta pedir para ela ser respeitosa, mas ter atitudes discriminatórias.
E qual é o papel da literatura nisso?
É trazer conhecimento e arte. Com mais conhecimento, você se torna mais aberto, fica mais tolerante, aceita melhor as diferenças. Mas não precisa ser didático para fazer isso.
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Divulgação
"ÁFRICA - CONTOS DO RIO, DA SELVA E DA SAVANA"
AUTORA Silvana Salerno
EDITORA Girassol
PREÇO R$ 59,90
INDICAÇÃO a partir de 8 anos
LANÇAMENTO neste sábado (28), a partir das 15h, na Livraria da Vila (r. Fradique Coutinho, 915, São Paulo) 
Fonte: Folhauol

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