Vocês não sabem
mas todas as manhãs me preparo
para ser, de novo, aquele homem.
Arrumo as aflições, as carências,
as poucas alegrias do que ainda sou capaz de rir,
o vinagre para as mágoas
e o cansaço que usarei
mais para o fim da tarde.
À hora do costume,
estou no meu respeitoso emprego:
o de Secretário de Informação e de Relações
[Públicas.
Aturo pacientemente os colegas,
felizes em seus ostentosos cargos,
em suas mesas repletas de ofícios,
os ares importantes dos chefes
meticulosamente empacotados em seus fatos,
a lenta e indiferente preguiça do tempo.
Todas as manhãs tudo se repete.
O poeta Eduardo White se despede de mim
à porta de casa,
agradece-me o esforço que é mantê-lo,
alimentado, vestido e bebido
(ele sem mover palha)
me lembra o pão que devo trazer,
os rebuçados para prendar o Sandro,
o sorriso luzidio e feliz para a Olga,
e alguma disposição da que me reste
para os amigos que, mais logo,
possam eventualmente aparecer.
Depois, ao fim da tarde,
já com as obrigações cumpridas,
rumo a casa.
À porta me esperam
a mulher, o filho e o poeta.
A todos cumprimento de igual modo.
Um largo sorriso no rosto,
um expresso cansaço nos olhos,
para que de mim se apiedem
e se esmerem no respeito,
e aquele costumeiro morro de fome.
Então à mesa, religiosamente comemos os quatro
o jantar de três
(que o poeta inconsta
na ficha do agregado).
Fingidamente satisfeito ensaio
um largo bocejo
e do homem me dispo.
Chamo pela Olga para que o pendure,
junto ao resto da roupa,
com aquele jeito que só ela tem
de o encabidar sem o amarrotar.
O poeta, visto depois
e é com ele que amo,
escrevo versos
e faço filhos.
[...]
Obras publicadas: Amar sobre o Índico (1984);Homoíne (1987); O país de mim (1989);Poemas da ciência de voar e da engenharia de ser ave (1992); Os materiais do amor; O desafio à tristeza (1996); Janela para oriente (1999). Eduardo White é possivelmente a maior expressão da poesia africana de Língua Portuguesa da atualidade. Moderníssimo, kafkiano, os seus textos apontam para uma leitura poética metalinguística, ou seja, em que os poemas, ao engendrarem a si mesmos, contam, paralelamente, a história de seu povo (amores, sofrimentos, opressões, miséria, estigmas das guerras, etc.) e a história da própria linguagem literária.
Fpnte: http://www.guesaerrante.com.br/2005/11/29/Pagina125.htm
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Mulheres Pretas
Conversar com a atriz Ruth de Souza era como viver a ancestralidade. Sinto o mesmo com Zezé Motta. Sua fala, imortalizada no filme “Xica...
-
Certo dia, a boca, com ar vaidoso, perguntou: – Embora o corpo seja um só, qual é o órgão mais importante? Os olhos responderam: – O órgão ...
-
Há muito tempo houve uma tremenda guerra entre as aves e o restante dos animais que povoa as florestas, savanas e montanhas africanas. ...
-
O cachorro, que todos dizem ser o melhor amigo do homem, vivia antigamente no meio do mato com seus primos, o chacal e o lobo. Os três br...
Nenhum comentário:
Postar um comentário