quarta-feira, 12 de outubro de 2016

'Ifigênia' é obra emblemática do feminismo latino-americano

foto de Teresa de la Parra em 1920.( Foto: Biblioteca Nacional, Caracas-Venezuela) ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Foto: Biblioteca Nacional
 escritora Teresa de la Parra em 1920, quatro anos antes da publicação de 'Ifigênia'

"Ifigênia", de Teresa de la Parra –autora francesa, filha de venezuelanos– é um livro híbrido, composto de diferentes gêneros textuais, como a carta, o diário, o relato e a narrativa ficcional.

Publicado pela primeira vez em 1924, em Paris, recebeu o subtítulo "diário de uma jovem que escreveu porque estava entediada", numa nítida referência à condição da protagonista e narradora Maria Eugenia Alonso –venezuelana de família aristocrática, que, tendo vivido em Paris desde a infância, volta a Caracas doze anos depois.

Lá, confinada na grande e triste casa da avó, entre cheiros de jasmim e velas de cera, passa a lidar com uma realidade asfixiante, na qual o modelo de felicidade para as mulheres se resume ao matrimônio e à maternidade.

O romance, marcado pelo olhar irônico, e por vezes corrosivo, da narradora sobre o peso das convenções sociais e familiares do início do século 20, tornou-se não apenas um clássico da moderna literatura franco-venezuelana, como também uma obra emblemática do feminismo latino-americano.

E se, por suas ideias libertárias, causou controvérsias na Venezuela assim que foi publicado, não deixou também de ganhar uma surpreendente popularidade na França.

DIVISÕES

A primeira das quatro partes do livro apresenta-se na forma de uma longa carta escrita por Maria Eugenia a uma amiga, em que conta os detalhes de seu retorno a Caracas, desfia coisas vividas e lembradas, faz críticas incisivas à sociedade preconceituosa do tempo e revê acontecimentos históricos do país.

Já as partes que se seguem integram um diário peculiar que, para além do registro descritivo dos dias, salta para fora da moldura do cotidiano, de modo a extrair da experiência pessoal uma reflexão mais ampla sobre os embates de uma mulher com o seu próprio entorno.

Num jogo entre a primeira pessoa da narradora e os resumos em terceira pessoa que antecedem cada capítulo, o diário não se fecha conclusivamente na última parte, intitulada "Ifigênia"–nome mitológico associado à ideia de sacrifício e cujo significado é "poderosa desde o nascimento"–, mas deixa uma interrogação intrigante sobre os acontecimentos na vida da protagonista Maria Eugenia.

ENGENHOSA

O domínio da linguagem e dos artifícios narrativos é notável no livro, o que evidencia a engenhosidade de Teresa de la Parra, uma escritora que não tem medo de ousar.

Com destreza, ela maneja os limites entre verdade e mentira, realidade e ficção, presente e passado, sempre atenta aos detalhes e modulações do que é relatado ou descrito. Além disso, coloca-se na vanguarda política de seu tempo, ao condenar o que chama de "as nefastas influências" da colonização europeia, denunciar a dizimação dos índios e criticar os ranços do patriarcalismo latino-americano.

Em edição caprichada, "Ifigênia" conta com a tradução não menos primorosa de Tamara Sender, que também assina o posfácio. É um livro que vem preencher, em grande estilo, uma lacuna editorial no Brasil. E que, mesmo dos dias de hoje, permanece instigante e indispensável.

MARIA ESTHER MACIEL, professora de literatura comparada da UFMG, é autora de "Literatura e Animalidade" (Civilização Brasileira) 
Fonte: Folhauol

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