O que faz um autor de poucos livros e que equiparou a criação literária à de galinhas ser considerado, com pouca chance de controvérsia, o maior escritor brasileiro vivo? Não um prêmio, é certo, ainda essas distinções só venham a confirmá-lo. A grandeza de Raduan Nassar é tal que não carece do autor ou de ninguém como relações públicas —algo difícil de conceber hoje.
O que está em cena em sua obra é a tensão entre uma apologia da destruição da verdade e a defesa feroz da própria fala. Nisso reside uma afirmação categórica, realizada de forma violenta, de uma virilidade à beira do colapso e potencializada tanto pela intensidade quanto pela precariedade.
Moacyr Lopes Jr./Folhapress
O escritor Raduan Nassar
Esse protagonismo do corpo tem dois pilares. O primeiro, a relação de distanciamento dos textos com seu contexto histórico. Sua ficção considera um embate mais amplo: o de vontades de poder que se manifestam pela linguagem.
"Menina a Caminho" bebe na infância de Raduan, mas o texto não só não o explicita como cria, na descrição do armazém, parentesco com a Tebas de Sófocles. Um copo de cólera opõe, aparentemente durante a ditadura, a jornalista da cidade ao chacareiro, mas dessa ambientação há apenas indícios. Em "Lavoura", a origem mediterrânea da família é citada, mas a falta de referentes termina por lhe conferir um forte tom mítico. Isso não significa que a obra seja alheia a seu tempo, mas sim que opta por via mais indireta entre realidade e ficção, que leva em conta o fato de as questões humanas esconderem, sob a máscara da linguagem e o disfarce do cinismo, a luta pelo poder e o controle dos corpos.
O segundo pilar da obra de Raduan é o erotismo. Para o chacareiro, associar a verdade dogmática à mulher significa dotar esse inimigo conceitual de um corpo material, apto portanto a estabelecer relações tanto de poder quanto de prazer. É na imposição de uma fala que o vigor sexual pode ser reencontrado: a fricção dos discursos é tão ou mais erótica que a das peles. Em "Lavoura", André recusa uma ordem na qual o corpo seja levado em conta apenas como instrumento do trabalho. Assim, subverter sua função e votá-lo ao dispêndio e à infertilidade passa a ser também um ato político. Como a linguagem só pode ser portadora de verdades provisórias, as narrativas de Raduan se abrem a um recomeço que perpetua o sofrimento e transforma os narradores em Tântalo ou Sísifo. Enfim, Raduan Nassar: tanto pelas palavras como pelo silêncio, um gigante.
ESTEVÃO AZEVEDO é escritor e mestre em literatura brasileira pela USP, especializado na obra de Raduan Nassar
Fonte: Folhauol
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