TADEU PEREIRA DOS SANTOS
Sebastião Bernardes de Sousa Prata (1915-93), negro, ator, umbandista, político, poeta, escritor, compositor, pai de cinco filhos e com outras significações constituídas ao longo de quase 80 anos. Profissionalmente, destacou-se no cinema e teatro brasileiros, com ênfase nos filmes "Moleque Tião" (1943), "Carnaval no Fogo" (1949), "Rio Zona Norte" (1957), "Assalto ao Trem Pagador" (1962) e "Macunaíma" (1969), nos quais sua interpretação o projetou no âmbito da arte.
Em 2015, afirmamos que, se Prata estivesse vivo, completaria cem anos. Contudo, as homenagens e louvações são para Grande Otelo. Podemos tomar a data de nascimento de Prata como se fosse a de Grande Otelo? Reportamo-nos ao mesmo ser ou a seres distintos? Que ligações existem entre Prata e Grande Otelo? A realidade de um é constituída da mesma natureza que a do outro? É plausível denominarmos Sebastião Prata de Grande Otelo e vice-versa? Grande Otelo completa cem anos realmente? Sebastião Prata e Grande Otelo se diferenciam pela mera transposição de nomenclatura e entre eles não há diferenciação social? Quais são as implicações de aproximá-los ou distanciá-los ou, até mesmo, tomarmos um pelo outro?
Divulgação
O ator Grande Otelo em cena do filme "Macunaíma"
Embora a relação entre ambos suscite indagações, instauram-se, no país, plurais celebrações, em que instituições públicas ou privadas promovem ações comemorativas dos cem anos de Prata como sendo os de Grande Otelo.
A dubiedade de tomar Otelo por Prata cria a confusão entre o ser sujeito e ser personagens, por conduzi-lo à sua dimensão de produto cultural, fazendo com que a arte de Prata seja a razão do celebrar os seus cem anos de vida.
O imbróglio instaurado pelo mercado que transmuta Prata em Grande Otelo é herança dos usos e abusos em seu estreitamento à indústria cultural do país, por quase 60 anos de produção de sua memória, a qual, por reiteração, desfigurou-o em Otelo.
A confusão instalada desdobra-se em usurpação não apenas da experiência de Prata, mas de seu próprio nascer, que, de algum modo, oportunizaria sua individualização. O ser potência que deságua na pluralidade dos nós, do seu vir a ser, é silenciado e reduzido à identidade comercial, cujo grotesco, riso e vulgar o fazem um homem da arte. Desta feita, sua humanidade se faz arte conflitiva numa irrupção de seu enquadramento e a constante reiteração e veemências de suas atuações impuseram o modo de lembrá-lo para esquecê-lo como gênio, instrumentalizando o imperativo de sua harmonização social.
Pautando-se nas querelas revisionistas, as celebrações abrem novas frestas para discutir historicamente o nascimento do próprio sujeito. Há um movimento em que o literário, dado a ler como histórico, ganha ares pela circulação, cujo processo de recepção o transforma em verdade, na medida em que a novidade pauta-se mais no fabuloso, do que no se perguntar em que consiste ele ter nascido em 1915 ou 1917. Em relação a 1915, o próprio Prata afirma, em entrevista à revista "Manchete" em 1964: "Dizem que nasci a 18 de outubro de 1915, mas pelo meus cálculos tenho dois anos mais e pelos de minha madrinha... dois anos menos". Por tal horizonte, Prata já teria, então, completado cem anos, se seu nascimento ocorrera em 1913.
Historicamente, tais representações, que tateiam a experiência de Prata como Grande Otelo, reclamam sua humanização. Pelo trabalho exposto, reivindicamos a dualidade entre o sujeito (Sebastião Prata) e o produto cultural (Grande Otelo), que, embora se façam relacionais, portam constituição de naturezas distintas. Sebastião Prata, nascido em 1915, era um ser humano imbuído de valores, concepções políticas e religiosas próprias, que lhe conferem uma identidade pessoal. Cidadão negro, vinculado ao universo da negritude brasileira, relacionava-se com o mercado cultural, mas se distanciava do mesmo, na medida em que, na luta pela sobrevivência, sofria as agruras sociais. Nessa perspectiva, se fez criança, filho, adolescente, adulto, pai, ator, religioso, político, teve diversos amores, lidou com o racismo, o preconceito e a discriminação social, criando, para tanto, diversas táticas e estratégias.
Já Grande Otelo surgiu em 1935, como forma de tornar comerciável a arte de Sebastião Prata. Daí, por meio de uma negociação, o ator firmou-se como um produto cultural, criado para ser mercadoria de consumo. Pela sua constante presença no cinema e no processo de circulação de seus personagens no cenário artístico do país passa a ser objeto das apropriações dos diversos meios de comunicação. E, nesses deslocamentos, vão sendo atribuídos novos sentidos à realidade de Prata pela sua visibilidade manifesta em cartazes, folders e traillers, que direcionam o espectador a vê-lo e lê-lo no cinema como Grande Otelo.
Em relação a Sebastião Prata, podemos acompanhar o seu processo de transformação pessoal, que o define como cidadão negro, enquanto Grande Otelo se afirma como ator ícone no cenário artístico brasileiro, reconhecido nacional e internacionalmente, usurpando o lugar de Prata. O resultado desse processo são imagens produtoras do mesmo efeito cômico, definido por meio de suas atuações no cinema e no teatro, criando um produto comercial vendável.
Prata tem sua vida definida pela realidade social que experimenta, marcada pela sua dubiedade religiosa, suas performances como compositor e interprete, boêmio, político, dentre outros, daí se fazer plural pela sua complexidade. Podemos concebê-lo como um homem em meio às tensões sociais, diferindo-o do produto cultural Grande Otelo. Em última análise, deve-se compreender que a temporalidade de Prata se inscreve no período de 1915 a 1993 (nascimento-morte), enquanto a de Grande Otelo inicia-se em 1935 e finda na morte de Prata, apesar de ainda permanecer vivo na memória.
Em suma, as celebrações têm se prestado a inversões de seu significado em duplo sentido: não se pautam na reflexão sobre o sujeito celebrado, mas, ao contrário, promovem o seu próprio realce, por intermédio dele. É necessário considerar, porém, que também a celebração manifeste indícios e rastros da humanidade de Sebastião Prata, as quais, enunciadas como sombras, ficam à espera de se tornarem aberturas para sua perscrutação num vislumbre de cidadão negro que reclama a sua negritude no cumprimento e usufruto de deveres e direitos peculiares aos cidadãos brasileiros.
Assim, o horizonte de expectativas relaciona sujeito, personagens e produto cultural, interligando-os por aproximações e distanciamentos, assegurando o processo de constituição individual de cada qual, com consideração de suas vinculações. Afinal, de quem é o centenário celebrado?
TADEU PEREIRA DOS SANTOS é doutorando em história pela Universidade Federal de Uberlândia. Ele tem realizado pesquisa nas áreas de cidade, memória e biografia.
Fonte: Folhauol
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