Associando a arte afrobrasileira a músicas de louvor cristão, religiosos sofrem resistência dentro e fora das igrejas.
'O berimbau vai aonde o terno não chega': a capoeira gospel une a arte brasileira à religião evangélica (Foto: BBC Brasil/Reprodução)
O berimbau vai aonde o terno não chega': a capoeira gospel une a arte brasileira à religião evangélica (Foto: BBC Brasil/Reprodução)
Estavam presentes o berimbau, o atabaque, a ginga e os saltos mortais.
Quase tudo fazia lembrar um jogo de capoeira típico, mas, em vez dos
cânticos que enaltecem os orixás ou trazem referências à cultura negra, os versos faziam louvor a Jesus Cristo e a roda era alternada com momentos
de pregação e oração.
"Não deixa seu barco virar, não deixa a maré te levar, acredite no Senhor,
só ele é quem pode salvar", cantavam as cerca de 200 pessoas, reunidas
na quadra de uma escola para o "1º Encontro Cristão de Capoeira do Gama" (região administrativa do Distrito Federal), numa tarde de sábado.
Era mais um evento de capoeira evangélica, também chamada de capoeira gospel, vertente que ganha cada vez mais adeptos no Brasil, principalmente
por meio da palavra e do gingado de antigos mestres que se converteram à religião. Se antes a prática enfrentava resistência dentro de igrejas, agora,
nessa nova roupagem, é cada vez mais considerada uma eficiente
ferramenta de evangelização.
"Hoje é difícil você ir numa roda que não tenha um (capoeirista evangélico), e vários capoeiristas viraram pastores. É um instrumento lindo de evangelização porque é alegre, descontraído, traz saúde, benefícios sociais", afirma Elto de Brito, seguidor da Igreja Cristã Evangélica do Brasil e um dos palestrantes do evento.
Praticante de capoeira há 40 anos e convertido há 25, Suíno é líder do movimento "Capoeiristas de Cristo", que estima reunir cerca de 5 mil pessoas
no país. Ele realiza encontros nacionais em Goiânia há 13 anos - a edição
de 2018 será pela primeira vez em Brasília.
O mestre calcula ainda que já existem cerca de 30 "ministérios" de
capoeira, ou seja, grupos diretamente ligados a igrejas. "Há um cuidado
para não chocar com as visões da igreja. Cuidado com a roupa, com
o linguajar, com as músicas, mas que "não necessariamente tem que
ser só música que fala de evangelho, de Deus", explica.
Crescimento da capoeira 'gospel' tem gerado incômodo entre capoeiristas tradicionalistas e o movimento negro (Foto: BBC Brasil/Reprodução)
Crescimento da capoeira 'gospel' tem gerado incômodo entre capoeiristas tradicionalistas e o
movimento negro (Foto: BBC Brasil/Reprodução)
Críticas
O crescimento da prática, porém, tem gerado incômodo entre capoeiristas tradicionalistas e o movimento negro, que veem na novidade uma forma de apropriação cultural e apagamento da raiz afrobrasiliera da capoeira, prática que surgiu como forma de resistência entre escravos, a partir do século 18.
Eles também reclamam que em algumas dessas rodas haveria discursos
de "demonização" contra a capoeira tradicional e as religiões do candomblé
e da umbanda.
O Colegiado Setorial de Cultura Afrobrasileira, que faz parte do Conselho Nacional de Políticas Culturais do Ministério da Cultura, chegou a divulgar
em maio a "Carta de repúdio à 'capoeira gospel' e à expropriação das expressões culturais afrobrasileiras".
'O pastor com berimbau chega aonde o pastor de terno não chega', diz a professora de capoeira Laís Dutra (Foto: BBC Brasil/Reprodução)
O pastor com berimbau chega aonde o pastor de terno não chega', diz a professora de capoeira Laís Dutra (Foto: BBC Brasil/Reprodução)
O documento, uma reação ao 3º Encontro Nacional de Capoeira Gospel
convocado para junho deste ano, em João Pessoa (PB), reconhece que seguidores de qualquer credo podem praticar capoeira, mas cobra
"respeito" a sua tradição.
"Temos lutado contra o racismo em suas diversas e perversas
manifestações. A demonização perpetrada por pastores, mestres ou
professores de 'capoeira gospel', ensinando o ódio e a intolerância
contra as raízes da capoeira e contra seus praticantes não evangélicos,
é um crime de ódio que fere a liberdade e a dignidade humana",
diz a carta.
Patrimônio
A capoeira, que no passado chegou a ser proibida, recebeu em 2014
o título de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade da Unesco,
órgão da ONU para educação. O Iphan, órgão responsável por sua "salvaguarda" no Brasil, reconhece em documento sua "ligação com
práticas ancestrais africanas".
A antropóloga Maria Paula Adinolfi, técnica do Iphan, diz que
"não é possível impedir a capoeira gospel", mas explica que o órgão
está focado em "fortalecer ações que vinculam a capoeira à
matriz africana" como "uma política de reparação do processo
de apagamento da memória afrobrasileira e de genocídio do povo negro".
Capoeira chegou a ser proibida no passado e, em 2014, recebeu o título de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade da Unesco (Foto: BBC Brasil/Reprodução)
Capoeira chegou a ser proibida no passado e, em 2014, recebeu o título de Patrimônio Cultural
Imaterial da Humanidade da Unesco (Foto: BBC Brasil/Reprodução)
Organizador do evento na Paraíba, Ricardo Cerqueira, o contramestre
Baiano, recebeu, além da carta de repúdio, algumas ligações com
críticas e até mesmo ameaças de processo. Seguidor da Igreja
Batista, ele diz reverenciar os grandes mestres da capoeira, como
os baianos Bimba, Pastinha e Waldemar, já falecidos, mas argumenta
que a "capoeira não pertence à cultura africana".
"O país é laico. Acho que cada um tem liberdade para fazer a sua
capoeira da forma que quiser", defendeu.
"Colocamos o nome gospel sem intenção de descaracterizar a
capoeira, até porque nós usamos todos os instrumentos e cantamos
também música secular", disse ainda.
Diferenças
Além das músicas e orações, mais alguns detalhes diferenciam
a capoeira evangélica da "capoeira do mundo", explicou à
reportagem Gilson Araújo de Souza, pastor evangélico e
mestre capoeirista em Manaus.
Mestre Suíno calcula ainda que já existem cerca de 30 'ministérios' de capoeira, ou seja, grupos diretamente ligados a igrejas (Foto: BBC Brasil/Reprodução)
Mestre Suíno calcula ainda que já existem cerca de 30 'ministérios' de capoeira, ou seja,
grupos diretamente ligados a igrejas (Foto: BBC Brasil/Reprodução)
Em geral, rodas evangélicas não chamam a troca de corda de
"batismo" porque o termo deve ser usado apenas no seu sentido
religioso, de se converter e receber o Espírito Santo. Além disso,
alguns capoeiristas também evitam o uso de apelidos, que, segundo
Souza, tem origem na época que a capoeira era perseguida.
"No mundo cristão, Deus nos chama pelo nome. Antes, eu era
conhecido como mestre Gil Malhado, hoje sou chamado de mestre
pastor Gilson. Não preciso me camuflar", explica ele, que faz
parte da Igreja de Cristo Ministério Apostólico.
Adoção do termo
Adoção do termo "gospel" serve para quebrar resistências, diz mestre de
capoeira (Foto: BBC Brasil/Reprodução)
"Anos atrás, eu enfrentei muita dificuldade para levar a capoeira
para a igreja. O pastor batia a porta na minha cara, dizia que
era coisa da macumba, que não podia. Hoje eu sou pastor e
as portas se abriram", conta também.
Segundo o mestre Suíno, a adoção do termo "gospel" fez parte
desse processo de quebrar resistências. Era uma forma, observa,
de convencer os pastores que a capoeira podia ser praticada
dentro dos valores cristãos.
Hoje ele próprio repudia esse "rótulo" por causa da polêmica
que tem gerado. Suíno afirma que, apesar de haver algumas
práticas próprias da capoeira cristã, sua "essência" de
capoeira é a mesma.
"Não existe capoeira gospel! Não queremos bagunçar a capoeira.
Nós respeitamos os mestres, respeitamos os fundamentos da
capoeira, respeitamos as tradições, e vamos defender porque
quem não defende a capoeira não tem direito de ser capoeirista",
discursou, empolgado, durante o evento no Gama, cujo lema
era "minha cultura não atrapalha a minha fé".
Constante mutação
Alguns mestres de capoeira acusam capoeiristas evangélicos de apagar a raiz africana dessa arte brasileira (Foto: BBC Brasil/Reprodução)
Alguns mestres de capoeira acusam capoeiristas evangélicos de apagar a raiz
africana dessa arte brasileira (Foto: BBC Brasil/Reprodução)
Diante da polêmica, o historiador da capoeira Matthias Röhrig
Assunção ressalta que a prática já passou por muitas
transformações desde seu surgimento.
Hoje, há três vertentes principais: a angola (mais lenta e gingada,
tida como a mais próxima da "original"), a regional
(mais acelerada, que incorpora movimentos de lutas marciais)
e a contemporânea - uma mistura das duas primeiras que
surgiu no Sudeste a partir dos anos 70 e foi o estilo
que conquistou o mundo.
"Acho que capoeira tradicional não existe mais, todos
(os estilos) são modernizados", resume Assunção,
que é professor do departamento de história da
Universidade de Essex, na Inglaterra.
Capoeira enfrentava resistência dentro de igrejas, agora, com nova roupagem, é cada vez mais considerada ferramenta de evangelização (Foto: BBC Brasil/Reprodução)
Capoeira enfrentava resistência dentro de igrejas, agora, com nova roupagem,
é cada vez mais considerada ferramenta de evangelização (Foto: BBC Brasil/Reprodução)
Embora não simpatize com a ideia de uma capoeira
evangélica, o professor afirma que não se trata do
primeiro processo de "apropriação" da prática.
"A capoeira gospel me parece ser mais uma estratégia
desses grupos religiosos de ocuparem espaços e de ganhar
adeptos, mas não vejo como parar isso, não tem como
proibir", observou.
"Historicamente, houve muitas apropriações da capoeira.
Há uma apropriação nacionalista forte, rodas no exterior
com as bandeiras do Brasil, o verde e o amarelo, por exemplo,
m que a origem da capoeira, a história de resistência e a
ligação com os africanos escravizados muitas vezes não
têm destaque algum", pondera.
Fonte: G1 DF/BBC/Brasil
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