“Sei que pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e a conversação dos homens ilustrados (?).” É assim que Maria Firmina dos Reis (1822-1917), então professora de primeiras letras de São José de Guimarães, vila litorânea no Maranhão, inicia “Úrsula”, obra publicada em 1859.
Pedindo licença para que o livro pudesse caminhar entre nós, a autora, registrada como “uma maranhense” no frontispício da primeira edição, não poderia imaginar qual seria o impacto de sua “tímida e acanhada” produção: “Úrsula” não apenas se tornou a obra inaugural de nossa literatura afro-brasileira — marcando de vez a posição de Firmina na historiografia literária nacional —, como antecipou em no mínimo dez anos os debates abolicionistas que viriam aterrissar nas terras do então Império.
Conhecido como o primeiro romance de autoria negra e feminina no Brasil — e o primeiro no gênero a ser publicado por uma mulher negra em todos os países de língua portuguesa —, o livro apresenta em suas páginas o drama da escravização muito antes do surgimento de obras canônicas da literatura brasileira, como “O Navio Negreiro” (1870), de Castro Alves, e “A Escrava Isaura” (1875), de Bernardo Guimarães.
“O pioneirismo não está só no fato de Firmina ter publicado uma obra literária. As próprias características da produção vão marcar essa importância. Até então o negro, quando aparecia na literatura, era objeto das reflexões estético-políticas dos escritores brancos, geralmente homens. Firmina, como uma mulher negra no século 19, rompe com isso”, explica ao TAB o sociólogo Rafael Balseiro Zin, mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e especialista em Estudos Brasileiros pela FESPSP (Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo).
Autor de “Maria Firmina dos Reis: a trajetória intelectual de uma escritora afrodescendente no Brasil oitocentista” (2019), Balseiro conheceu a autora de “Úrsula”, “Gupeva” (1861), “Cantos à Beira-Mar” (1871) e “A Escrava” (1887) durante uma pesquisa centrada em Luiz Gama, precursor do abolicionismo no país. Como era ser negro e escritor no Brasil do século 19?
Foi no mestrado que o sociólogo passou a mergulhar na vida e na obra da autora maranhense, que diz ser um dos maiores patrimônios da cultura brasileira. “Ser negra e escritora naquele contexto ensina que o Brasil não era necessariamente esse país binário que a gente pensava que era. O exemplo dela é muito interessante, porque mostra que era possível romper com essas estruturas binárias e se estabelecer. Claro, dependendo de muita negociação. Não à toa, o prólogo do livro de Firmina inicia com um pedido de desculpas. A autora pede desculpas ao seu leitor e ao universo masculino por estar apresentando o seu escrito”, afirma.
Ventos abolicionistas na literatura
O primeiro recenseamento demográfico no país, que data de 1872, mostrava que 89,6% da população brasileira — somando livres e escravizados — era composta por analfabetos. O fato de Firmina ter ocupado o cargo de professora à época já a coloca em posição de destaque em uma sociedade que começava a ser estruturada nos pilares fundantes do patriarcado e da escravidão. Ainda que sua obra tenha sido publicada no fim da década de 1850, Balseiro diz haver indícios de que o livro possa ter sido finalizado antes disso.
Prenunciadora na denúncia da condição social ocupada tanto pela mulher quanto pelo negro escravizado na sociedade, a autora e sua obra foram, por fim, destinadas a um longo esquecimento de 100 anos. Como embrião do abolicionismo na literatura, Firmina abriu caminho para uma série de futuras obras notáveis, ainda que seja custoso mensurar sua influência. “Como o livro circulou apenas no Maranhão, e talvez não tenha ido para a Corte, é difícil dizer que a obra tenha influenciado”, sinaliza Balseiro.
O abolicionismo era apenas uma das ideias novas que chegavam aos portos brasileiros por meio dos contatos travados entre intelectuais. Ideias estas que pululavam em países europeus e nos Estados Unidos, como o anticlericalismo, o darwinismo e o liberalismo, entre outras correntes filosóficas e políticas.
Lugar de fala
Na visão de Maria Helena Pereira Toledo Machado, especialista em história social da escravidão, abolição e pós-emancipação, e autora do texto introdutório da edição de “Úrsula” da Penguin & Companhia das Letras, ainda que não tenha tido impacto sobre romances abolicionistas posteriores, Firmina traça a escravidão com tintas muito vívidas, mostrando a violência e a crueldade desse sistema de dominação, sem que defenda uma saída violenta para ele.
Fonte: Geledés