segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Autora negra antecipou o abolicionismo na literatura brasileira em 1859

Maria Firmina dos Reis, primeira romancista brasileira, é ... https://www.almapreta.com/editorias/realidade/maria-firmino-dos-reis-primeira-romancista-brasileira-e-homenageada-na-flup-de-2018


“Sei que pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e a conversação dos homens ilustrados (?).” É assim que Maria Firmina dos Reis (1822-1917), então professora de primeiras letras de São José de Guimarães, vila litorânea no Maranhão, inicia “Úrsula”, obra publicada em 1859.

Pedindo licença para que o livro pudesse caminhar entre nós, a autora, registrada como “uma maranhense” no frontispício da primeira edição, não poderia imaginar qual seria o impacto de sua “tímida e acanhada” produção: “Úrsula” não apenas se tornou a obra inaugural de nossa literatura afro-brasileira — marcando de vez a posição de Firmina na historiografia literária nacional —, como antecipou em no mínimo dez anos os debates abolicionistas que viriam aterrissar nas terras do então Império.

Conhecido como o primeiro romance de autoria negra e feminina no Brasil — e o primeiro no gênero a ser publicado por uma mulher negra em todos os países de língua portuguesa —, o livro apresenta em suas páginas o drama da escravização muito antes do surgimento de obras canônicas da literatura brasileira, como “O Navio Negreiro” (1870), de Castro Alves, e “A Escrava Isaura” (1875), de Bernardo Guimarães.

“O pioneirismo não está só no fato de Firmina ter publicado uma obra literária. As próprias características da produção vão marcar essa importância. Até então o negro, quando aparecia na literatura, era objeto das reflexões estético-políticas dos escritores brancos, geralmente homens. Firmina, como uma mulher negra no século 19, rompe com isso”, explica ao TAB o sociólogo Rafael Balseiro Zin, mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e especialista em Estudos Brasileiros pela FESPSP (Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo).

Autor de “Maria Firmina dos Reis: a trajetória intelectual de uma escritora afrodescendente no Brasil oitocentista” (2019), Balseiro conheceu a autora de “Úrsula”, “Gupeva” (1861), “Cantos à Beira-Mar” (1871) e “A Escrava” (1887) durante uma pesquisa centrada em Luiz Gama, precursor do abolicionismo no país. Como era ser negro e escritor no Brasil do século 19?

Foi no mestrado que o sociólogo passou a mergulhar na vida e na obra da autora maranhense, que diz ser um dos maiores patrimônios da cultura brasileira. “Ser negra e escritora naquele contexto ensina que o Brasil não era necessariamente esse país binário que a gente pensava que era. O exemplo dela é muito interessante, porque mostra que era possível romper com essas estruturas binárias e se estabelecer. Claro, dependendo de muita negociação. Não à toa, o prólogo do livro de Firmina inicia com um pedido de desculpas. A autora pede desculpas ao seu leitor e ao universo masculino por estar apresentando o seu escrito”, afirma.

Ventos abolicionistas na literatura

O primeiro recenseamento demográfico no país, que data de 1872, mostrava que 89,6% da população brasileira — somando livres e escravizados — era composta por analfabetos. O fato de Firmina ter ocupado o cargo de professora à época já a coloca em posição de destaque em uma sociedade que começava a ser estruturada nos pilares fundantes do patriarcado e da escravidão. Ainda que sua obra tenha sido publicada no fim da década de 1850, Balseiro diz haver indícios de que o livro possa ter sido finalizado antes disso.

Prenunciadora na denúncia da condição social ocupada tanto pela mulher quanto pelo negro escravizado na sociedade, a autora e sua obra foram, por fim, destinadas a um longo esquecimento de 100 anos. Como embrião do abolicionismo na literatura, Firmina abriu caminho para uma série de futuras obras notáveis, ainda que seja custoso mensurar sua influência. “Como o livro circulou apenas no Maranhão, e talvez não tenha ido para a Corte, é difícil dizer que a obra tenha influenciado”, sinaliza Balseiro.

O abolicionismo era apenas uma das ideias novas que chegavam aos portos brasileiros por meio dos contatos travados entre intelectuais. Ideias estas que pululavam em países europeus e nos Estados Unidos, como o anticlericalismo, o darwinismo e o liberalismo, entre outras correntes filosóficas e políticas.

Lugar de fala

Na visão de Maria Helena Pereira Toledo Machado, especialista em história social da escravidão, abolição e pós-emancipação, e autora do texto introdutório da edição de “Úrsula” da Penguin & Companhia das Letras, ainda que não tenha tido impacto sobre romances abolicionistas posteriores, Firmina traça a escravidão com tintas muito vívidas, mostrando a violência e a crueldade desse sistema de dominação, sem que defenda uma saída violenta para ele.

Fonte: Geledés

sábado, 8 de agosto de 2020

Segundo romance do escritor e ativista negro James Baldwin chega a Portugal

 O romance “O quarto de Giovanni”, do escritor e ativista negro norte-americano James Baldwin, sobre o amor entre dois homens brancos, chega este mês a Portugal, pela primeira vez, pela Alfaguara, que tem estado a publicar a sua obra.

James Baldwin - Geledés

Imagem: https://images.app.goo.gl/DDsZCSFJPr782hQX9


Ao escrever este romance, James Baldwin, negro e homossexual, que sempre se afirmou na luta contra o racismo e a homofobia, “quebrou mais do que um tabu: um escritor negro a escrever sobre o amor entre dois homens brancos”, refere a editora.

Tanto assim é que, na altura em que foi escrito (1956), o editor de Baldwin aconselhou-o a queimar o manuscrito, mas volvido este tempo “O quarto de Giovanni” é hoje uma das suas obras mais célebres.

James Baldwin destacou-se desde cedo como romancista, ensaísta, poeta e dramaturgo, mas a par disso notabilizou-se como uma das vozes mais influentes do movimento de direitos civis e foi o primeiro artista afro-americano a aparecer na capa da revista Time.

“O quarto de Giovanni” foi o segundo romance de James Baldwin - a seguir a “Se o disseres na montanha”, editado em Portugal no final do ano passado -, “uma obra de culto que o firmou definitivamente como um dos grandes escritores americanos do século XX”, segundo a editora.

Até há dois anos, nada ainda tinha sido publicado deste autor em Portugal, apesar de já ter morrido há mais de 30 anos e de o seu primeiro livro datar de 1953.

A obra daquele que é considerado um dos nomes maiores da literatura americana e uma das vozes mais influentes do movimento dos direitos civis só começou a chegar às livrarias portuguesas em 2018, um ano após a estreia do documentário "Eu não sou o teu Negro", baseado no livro inacabado de James Baldwin "Remember this house".

Com a sua entrada no catálogo da Alfaguara, chancela do grupo Penguin Random House, foi publicado “Se esta rua falasse”, um “romance-manifesto” original de 1974, contra a injustiça da justiça, que narra a história de amor de um casal de jovens negros, de classes sociais baixas, que se vê forçado à separação, quando o rapaz é preso sob uma falsa acusação de violação.

No ano seguinte, a Alfaguara trouxe para Portugal aquele que foi o primeiro livro, e o primeiro romance, de James Baldwin, “Se o disseres na montanha”, considerado a sua obra mais importante e aquele que o próprio autor disse que escolheria, se só pudesse escrever um livro na vida.

Inspirado na juventude do autor, a história passa-se no seio de uma comunidade discriminada e aborda a procura da própria identidade e da autodeterminação, face à religião, à descoberta da sexualidade, ao despontar da homossexualidade, e ao destino que os outros lhe querem impor.

“O quarto de Giovanni”, que chega às livrarias portuguesas no dia 30 de junho, foi considerado pela BBC “um dos 100 romances que moldaram o nosso mundo”; pelo The Guardian, “uma preciosidade” e “uma obra de tremenda imaginação e fulgor”; e, pelo San Francisco Chronicle, uma obra “de uma beleza aterradora”.

O premiado escritor e crítico literário irlandês Colm Tóibín afirmou que “Baldwin prova neste romance que era capaz de fazer milagres com as sombras e os matizes da intimidade”.

Trata-se da história de David, um jovem nova-iorquino que vive ao sabor dos dias, em Paris, cidade onde procura tomar as rédeas da vida enquanto a noiva passa uma temporada em Espanha.

“Numa noite de farra num bar clandestino, David conhece Giovanni, um 'barman' italiano, luminoso, sedutor, impertinente, e sente-se irremediavelmente atraído”, descreve a editora.

Os dois homens entregam-se a uma relação intensa, confinada ao quarto de Giovanni, com a nuvem do retorno iminente de Hella a pairar sobre os amantes.

Um postal anuncia a volta da noiva a Paris, e este regresso exige que David escolha entre a normalidade de uma vida segura com Hella e a incerteza de um futuro ao lado de Giovanni, uma decisão que “culminará numa tragédia inimaginável”.

“Impregnada de paixão, arrependimento e desejo, esta é a história de um trágico triângulo amoroso. E uma obra de culto merecido, que questiona a identidade de vários ângulos”, acrescenta a editora.

James Baldwin nasceu em Nova Iorque, em 1924, no bairro de Harlem, onde cresceu e estudou, tendo partido para França em 1948, fugindo ao racismo e à homofobia do seu país de nascimento.

O primeiro romance que escreveu foi recebido com excelentes críticas e, antes de publicar o segundo, deu à estampa um ensaio e uma peça de teatro.

Entre as suas obras mais importantes ainda não publicadas em Portugal, encontram-se “The fire next time”, “Going to meet the man”, “Notes of a native son” e “Another country”.

“Se esta rua falasse” foi adaptado ao cinema em 2018, por Barry Jenkins, o realizador de “Moonlight”, que recebeu o Óscar de Melhor Filme em 2016.

James Baldwin morreu em 1987, no sul de França, um ano depois de ter sido nomeado Cavaleiro da Legião de Honra Francesa, deixando duas dezenas de títulos publicados.

Fonte: https://24.sapo.pt/vida/artigos/segundo-romance-do-escritor-e-ativista-negro-james-baldwin-chega-a-portugal-no-dia-30

segunda-feira, 20 de julho de 2020

O garoto do espelho - filme nigeriano disponível da Netflix

Misturando drama e fantasia, O Garoto do Espelho usa um menino de 12 anos como guia de uma jornada mística pela África.

Na busca constante por conteúdos de diversos países, a Netflix apostou suas fichas no filme nigeriano O Garoto do Espelho. Mas é bom avisar desde já que a obra não possui nenhum ligação com o brasileiro O Menino no Espelho.
Os dois percorrem caminhos fantásticos, mas o longa que está no catálogo da Netflix é um drama fantástico pouco conhecido que se passa no meio das florestas africanas.

A história de O Garoto do Espelho

O Garoto do Espelho acompanha Tijan, um adolescente britânico que é levado para a terra natal de sua mãe, na África, após machucar outro garoto durante uma briga de rua. Quando chega na cidade de Banjul, ele começa a perseguir a aparição fantasmagórica de um garoto sorridente (que, por coincidência, aparece num espelho) e se perde da mãe.
Mas calma: por mais que uma boa parte do filme acompanhe os esforços desesperados da mãe de Tijan, não estamos falando de uma produção de terror. Muito pelo contrário…
Segundo a sinopse liberada pela própria Netflix, o jovem segue essa aparição que só ele consegue ver numa aventura cheia de elementos místicos, ritos de passagem e lições valiosas sobre si mesmo, suas raízes e o pai que ele nunca conheceu.

O diretor e o elenco do filme nigeriano O Garoto no Espelho

O filme foi escrito e dirigido pelo nigeriano Obi Emelonye (Último Voo para Abuja). É bem possível que você não conheça o nome, mas ele é um grande astro na sua terra natal.
O Garoto do Espelho
Foto: Divulgação

Essa fama permite que o longa seja estrelado outros nomes bem conhecidos do continente africano. Os principais são Genevieve Nnaji (A Estrada Nunca Percorrida), Edward Kagutuzi (Find Me in Paris) e Osita Iheme (Double Mama)
Fique de olho em Nollywood
O Garoto do Espelho não é um longa original da Netflix. É uma produção de 2011 que, assim como acontece com diversas obras independentes, foi adquirida tardiamente pelo serviço de streaming.
Entretanto, mesmo não sendo inédito, o filme é uma ótima porta de entrada para o rico e abundante cinema nigeriano.
É sempre bom lembrar que a a Nigéria tem um mercado gigantesco. Conhecido popularmente como Nollywood, a indústria cinematográfica do país produz em média 1200 filmes por ano, ficando atrás apenas de Bollywood.
É isso mesmo! Você não leu errado… Nollywood está muito na frente da toda-poderosa Hollywood quando o assunto é quantidade de filmes produzidos.
A diferença entre os dois mercados é que os principais lançamentos de Nollywood ficam presos ao sistema de home video. Em outras palavras: raramente ganham espaço nos cinemas ou nas televisões do resto do mundo.
Ainda assim, todos os longas possuem números expressivos de audiência, graças a fidelidade que o povo nigeriano tem com os produtos nacionais (ouviu, Brasil?).
É por isso que, mesmo não sendo uma produção original e exclusiva da Netflix, O Garoto do Espelho merece sua atenção. É um tipo de filme que, na maioria das vezes, fica restrito ao seu país de origem por conta da distribuição, apesar de merecer o reconhecimento do mundo inteiro.
By Flavio Pizzol

Os olhos dos mortos - Mia Couto


Estou tão feliz que nem rio. Deito-me com desleixo, bastando-me: eu e eu. O regressar de meu marido mediu, até hoje, todas as minhas esperas. O perdoar a meu homem foi medida do desespero. Durante tempos, só tive piedade de mim. Hoje não, eu me desmesuro, pronta a crianceiras e desatinos. Minha alegria, assim tanta, só pode ser errada.
Desculpe-me, Cristo: esplendoroso é o que sucede, não o que se espera. E eu, durante anos, tive vergonha da alegria. Estar-se contente, ainda vá. Que isso é passageiro. Mas ser-se alegre é excessivo como pecado mortalício.
É de noite e falta-me apenas um quase para estar sozinha no quarto. Ou, no rigor: o quarto está sozinho comigo. Nesta mesma cama sonhei tantas vezes que o meu amor vinha pela rua, eu escutava os seus Passos, cheia de ânsia. E antes que ele chegasse, corria a fechar a porta. Fosse esse gesto, o de trancar a fechadura, o meu fingido valimento. Eu fechava a porta para que, depois, o simples abrir dos olhos tivesse o brilho de um milagre. Para que ele, mais uma vez, casasse comigo. E o mundo se abrisse, casa, cama e sonho.
Durante anos, porém, os passos de meu marido ecoaram como a mais sombria ameaça. Eu queria fechar a porta, mas era por pânico. Meu homem chegava do bar, mais sequioso do que quando fora. Cumpria o fel de seu querer: me vergastava com socos e chutos. No final, quem chorava era ele para que eu sentisse pena de suas mágoas. Eu era culpada por suas culpas. Com o tempo, já não me custavam as dores. Somos feitos assim de espaçadas costelas, entremeados de vãos e entrâncias para que o coração seja exposto e ferível.
Venâncio estava na violência como quem não sai do seu idioma. Eu estava no pranto como quem sustenta a sua própria raiz. Chorando sem direito a soluço; rindo sem acesso a gargalhada. O cão se habitua a comer sobras. Como eu me habituei a restos de vida.
A semana passada foi quando o rasgão se deu. Venâncio ficou furioso quando descobriu, em estilhaços, a emoldurada fotografia na nossa sala. Era um retrato antigo, parecia estar ali mesmo antes de haver parede. Nele figurava Venâncio, ainda magro e moço, posando na nossa varanda. Pelo olhar se via que sempre fora dono e patrão. Surjo atrás, desfocada, esquecida. Sem pertença nem presença.
Ao ver a moldura quebrada e os vidros ainda espalhados pelo chão, Venâncio me golpeou com inusitada força, pontapés cruzaram o escuro do quarto entre gritos meus:
– Na barriga não, na barriga não!.
Depois, quando ele amainou, interrompi-lhe o choro e me soaram serenas e doces as palavras:
– Vê o sangue, Venâncio? Eu estava grávida…
– Grávida, você?! Com uma idade dessas!??
Arrumei vimas poucas roupas e fui, a pé, para o posto de socorro. Era manhã, fazia chuva e caía o sol. Algures, por um aí, deveria fantasiar um arco-íris. Mas eu estava cega para fantasias. Meu filho, esse primeiro que haveria de nascer, estava morto dentro de mim. As minhas mãos, ingénuas, ainda amparavam o ventre como se ele continuasse lá, enroscado grão de futuro. No passeio público, privadamente tombei. Antes que beijasse o chão já eu perdera as luzes e deixara de sentir a chuva no meu corpo.
Desmaiada, me espreitaram os dentros: gravidez não havia. Mais uma vez era falsa esperança. Esse vazio de mim, essa poeira de fonte seca, o não poder dar descendência a Venâncio, isso doía mais que perder um filho. Eu estava mais estilhaçada que o retrato da sala.
Quando despertei, me acreditei já morta, transferida para outro mundo. Morrer não me bastava: nesse depois ainda Venâncio me castigaria. Eu necessitava um outro jamais. Adivinhei as minhas fúnebres cerimónias. Venâncio e mais uns tantos, entre vizinhos e parentes. Se o meu homem me chorasse, nessa ida, seria para melhor me esquecer. A lágrima lava a sofrência. Os outros chamariam a isso de amor, saudade. Mas não era a viuvez que atormentaria Venâncio. Viúvo estava ele há muito. O que o podia atormentar era a feiura desta minha rnorte. Se de mim alguma vez se recordasse, seria Para melhor me ausentar, mais desfocada que o retrato da sala.
Venâncio não foi visitar-me ao hospital. O que eu fizera, ao dirigir-me por meu pé ao hospital, foi uma ofensa sem perdão. Até ali eu fechara as minhas feridas no escuro íntimo do lar. Que é onde a mulher deve cicatrizar. Mas, desta vez, eu ousara fazer de Cristo, exibir a cruz e a chaga pelas vistas alheias.
Ao regressar a casa, faço contas às dores. Por certo, Venâncio me espera para me fazer pagar. Por isso, me demoro na varanda como se esperasse um sinal para entrar. E ali permaneço, calada, como fazem as mulheres que, de encontro ao tempo, rezam para nunca envelhecerem.
Quando entro em casa, os estilhaços do retrato rebrilham no chão da sala. O fotografado olhar de Venâncio pousa sobre mim, assegurando os seus direitos de proprietário. Distraída, a minha mão recolhe um vidro. Na cama de casal, meu marido está enroscado, em fundo sono. Deito-me a seu lado e revejo a minha vida. Se errei, foi Deus que pecou em mim. Eu semeei, sim, mas para decepar. Se recolhi os grãos, foi para os deitar no moinho. Há quem chame isto de amor. Eu chamo a cruel dança do tempo. Nessa dança, quem bate o tambor é a mão da morte.
Lição que aprendi: a Vida é tão cheia de luz, que olhar é demasiado e ver é pouco. É por isso que fecham os olhos aos mortos. E é o que faço ao meu marido. Lhe fecho os olhos, agora que o seu sangue se espalha, avermelhando os lençóis.

Autor: Mia Couto
Conto: Os olhos dos mortos (p. 69-72)
Livro: O fio das missangas
Editora: Companhia das Letras
Ano: 2009

Mulheres Pretas

    Conversar com a atriz Ruth de Souza era como viver a ancestralidade. Sinto o mesmo com Zezé Motta. Sua fala, imortalizada no filme “Xica...